São Paulo, quarta-feira, 23 de fevereiro de 2000


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VELHAS-GUARDAS
Portela abre temporada 2000 de Marisa Monte

do enviado ao Rio

Marisa Monte está prestes a lançar seu quinto e ainda secreto álbum -deve sair no início de abril- e esquenta tamborins fundando um selo próprio e iniciando, com a Velha-Guarda da Portela, projeto de preservação de memória musical quase perdida.
Portelense desde pequenininha (seu pai foi diretor da escola), Marisa produziu o disco "Tudo Azul", que procura repor a tradição oral dos sambistas históricos da Portela, trazendo as primeiras gravações de sambas de Manacéa ("Nascer e Florescer"), Alberto Lonato ("Você Me Abandonou"), Alvaiade ("A Noite Que Tudo Esconde"), Ventura ("Benjamin"). Leia, a seguir, trechos da entrevista de Marisa à Folha.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)

Folha - Não há uma grande tradição de mulheres produtoras no Brasil. Você pretende começar a desenvolver isso?
Marisa Monte -
Eu co-produzo meus discos desde "Cor-de-Rosa e Carvão" (94), produzi "Omelete Man" (98), do Carlinhos Brown. Gosto de estúdio, gosto de pensar um projeto, uma equipe, um organograma. Pouco a pouco, tenho diversificado minhas áreas de atuação. Só a voz, como meio de expressão, não bastava para mim. Caminho para um trabalho cada vez mais autoral -de ter autoridade sobre ele, meter a mão.
É muito bacana poder contribuir dessa maneira também, servindo a outros, intermediando o trabalho deles para um público que talvez não tivesse oportunidade de conhecê-los, até por estarem inacessíveis. A Velha-Guarda não gravava desde 88.
Esse trabalho abre uma frente de direção artística em minha carreira. Abri um selo, Phonomotor, que se associou a uma gravadora grande porque não tem estrutura de distribuição e comercialização, mas é uma estrutura artística 100% independente. É licenciado para a EMI, mas o master é meu. Banquei o projeto, paguei a produção do disco. Meus álbuns vão sair pelo selo também.
Quem determina o que vai ser gravado e lançado no meu selo sou eu, não preciso submeter a departamentos. E eu estar ali já é um aval, viabiliza o trabalho.
Mas não pretendo que seja um selo tão ativo assim, não acho que vá lançar cinco discos por ano. Serão esse, os meus e, talvez, daqui a três ou quatro ou cinco anos, eu tenha outra idéia de outro projeto. Mas, em princípio, não penso em sair à cata de novos artistas, nem tenho tempo para isso.

Folha - No ato de bancar um disco que não é seu, quem aparece é a Marisa empresária?
Marisa -
Mas isso já sou há muitos anos. Se eu lhe contar minha estrutura empresarial, você pira, é uma loucura. É uma equipe enorme, empresário, escritório, advogados, e vai crescendo.

Folha - Não é essa sua diferença com as jovens Elis Regina, Gal Costa, Maria Bethânia, cantoras de uma "fase heróica" da MPB?
Marisa -
Acho muito difícil comparar geração, o meio mudou muito. A maneira de fazer mudou muito, mas muito. Não sei se é melhor ou pior, é uma evolução, um pacotão. Em muitos sentidos, acho que é uma melhora. Há mais mercado, uma estrutura industrial muito mais estabelecida.

Folha - A atuação empresarial não esfria a artística?
Marisa -
É lógico que interfere, mas acho que esquenta. Dá mais... autoridade mesmo (ri). Não sou autora só na hora de cantar, compor ou produzir, mas na hora de pensar minha carreira como um todo. Não sou minha própria empresária, mas tenho um pensamento de independência, que se confunde muito com a independência artística também.

Folha - O projeto com a Velha-Guarda parece se adequar a isso, representando tanto um resgate incomum quanto algo que serve à sua carreira, que vai ficar marcado dentro dela...
Marisa -
Nem penso em carreira. Serve à minha pessoa, como ouvinte e amante de música. Sou apaixonada pelo que eles fazem. É muito difícil separar o que é minha carreira do que é minha vida pessoal. Não sei quando começo a trabalhar nem quando termino.

Folha - Isso não é ruim?
Marisa -
Não, eu acho maravilhoso. Não sei se fazer show com a Velha-Guarda é mais prazer ou trabalho. É isso que eles têm a ensinar também. O lance deles é totalmente de celebração. A música deles é um meio de expressão, de estar juntos, festejar, recordar, homenagear, conviver. O princípio é este: o importante é ser feliz, divertir-se. É nisso que acredito, na minha carreira.

Folha - Nesse álbum, você retraça um trajeto que Paulinho da Viola fez quando produziu "Portela, Passado de Glória" (70). Há uma ponte entre os dois momentos?
Marisa -
Os dois discos são projetos de jovens artistas se interessando, intermediando, tornando possível. O que fiz é algo que acho que alguém devia fazer, e ninguém estava fazendo. Ficar reclamando? Vamos fazer, tenho capacidade, posso fazer. Em 30 anos, eles só têm três discos gravados. O óbvio seria pegar coisas mais conhecidas, num disco cheio de convidados, mas isso não privilegiaria eles, que são as estrelas.
O que eu queria era gravar coisas que estavam só na tradição oral deles. Fizemos milhões de reuniões, Paulinho mesmo é que se lembrou da música que ele canta. Cristina Buarque tinha fitas antigas, gravadas nos anos 70.
Tivemos uma equipe de pesquisa, levantamos a obra completa de cada um dos cerca de 20 compositores do grupo, 350 músicas. Nem dá para dizer que peguei tudo, Monarco mesmo falou: "Pô, depois que passa... Ainda tem mais coisa...". Isso não é meu, é do mundo. Entreguei cópias para eles. Quero dar para o Museu da Imagem e do Som.
Só coloquei duas realmente conhecidas, "Minha Vontade" e "Lenço", que eles mesmos nunca haviam gravado, só para as pessoas saberem que são deles. De "Corri pra Ver", eles fizeram a segunda parte agora. É uma coisa curiosa do samba, tradicionalmente só existe a primeira, a segunda é improvisada. Com o advento das gravações, as pessoas começaram a gravar as segundas, e as segundas passaram a existir. Mas, muitas vezes, essas segundas são feitas 30 anos depois pelo parceiro. "Corri pra Ver" só tinha a primeira, do Chico Santana, e Monarco e Casquinha fizeram a segunda agora, para o disco.

Folha - As velhas-guardas deixarem de interferir no Carnaval é um sinal de que o samba esteja em extinção? Samba hoje é pagode, axé?
Marisa -
Acho que não só. Não contraponho uma coisa à outra, elas se somam e convivem. O público é quem faz o mercado, temos de trabalhar um pouquinho mais na formação de um público mais exigente. Se isso se tornar economicamente interessante, a gravadora vai se interessar. E quem vai fazer ser é o público.

Folha - Fica mais interessante para gravadoras, agora que há essa onda em torno da música da velha-guarda cubana?
Marisa -
Artisticamente é muito diferente, mas é a mesma geração, e é tão rico e interessante quanto. Como lá, não há o interesse em mudar nada da arte deles. É bacana buscar a novidade pelo hiato geracional, pela inacessibilidade.

Folha - Qual é o papel da produção num trabalho como esse?
Marisa -
O espírito é a coletividade, todo mundo junto o tempo todo. Mas procurei uma dinâmica para não ficar sempre a mesma formação. Aí há as vinhetas, "seu" Casemiro só com a cuíca, e assim por diante. É como se fosse um zoom em alguns deles. Só "seu" Argemiro não quis.

Folha - Seu último disco, "Barulhinho Bom", é de 96. Por que a demora em lançar o novo?
Marisa -
Vendo de fora parece muito tempo, mas da minha perspectiva não é. Produzi, fiz dois anos e meio de turnê. É cada dia um hotel, você acorda à noite, "onde é o banheiro?", não pode dar uma topada porque no outro dia tem show. Tem que desenvolver uma capacidade de adaptação absurda. Agora começa tudo de novo, tenho agenda até o fim do ano, sei onde vou estar em cada dia, em agosto. Artisticamente é emburrecedor, você fica isolado, não convive com outros artistas.

Folha - Você está explicando aí uma das chaves da acomodação pelas quais muitos artistas passam no decorrer de suas carreiras? É emburrecedor?
Marisa -
Isso é muito pessoal. É para mim. Não ouço tanta música, não vejo tanto cinema. Não vejo os amigos, músicos, artistas plásticos, escritores. A conversinha é importante, faz falta.

Folha - Às vésperas do novo disco, você lança a Velha-Guarda, reaparece na mídia, participa de show. Isso faz parte de uma estratégia empresarial?
Marisa -
De jeito nenhum. Fiquei conhecida em show, demorei dois anos para gravar meu primeiro disco. Falaram que era estratégia, mas não tem estratégia. Estratégia é ser feliz. Não lancei antes a Velha-Guarda porque fiquei tentando um patrocínio. Queria dar de brinde de fim de ano por uma empresa que pagasse os custos do projeto. Não rolou.

Folha - Ninguém quis patrocinar a Velha-Guarda da Portela?
Marisa -
Ninguém quis patrocinar a Velha-Guarda da Portela.


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