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VELHAS-GUARDAS
Portela abre temporada 2000 de Marisa Monte
do enviado ao Rio
Marisa Monte está prestes a lançar seu quinto e ainda secreto álbum -deve sair no início de
abril- e esquenta tamborins
fundando um selo próprio e iniciando, com a Velha-Guarda da
Portela, projeto de preservação de
memória musical quase perdida.
Portelense desde pequenininha
(seu pai foi diretor da escola), Marisa produziu o disco "Tudo
Azul", que procura repor a tradição oral dos sambistas históricos
da Portela, trazendo as primeiras
gravações de sambas de Manacéa
("Nascer e Florescer"), Alberto
Lonato ("Você Me Abandonou"),
Alvaiade ("A Noite Que Tudo Esconde"), Ventura ("Benjamin").
Leia, a seguir, trechos da entrevista de Marisa à Folha.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)
Folha - Não há uma grande
tradição de mulheres produtoras no Brasil. Você pretende começar a desenvolver isso?
Marisa Monte - Eu co-produzo
meus discos desde "Cor-de-Rosa
e Carvão" (94), produzi "Omelete
Man" (98), do Carlinhos Brown.
Gosto de estúdio, gosto de pensar
um projeto, uma equipe, um organograma. Pouco a pouco, tenho diversificado minhas áreas
de atuação. Só a voz, como meio
de expressão, não bastava para
mim. Caminho para um trabalho
cada vez mais autoral -de ter autoridade sobre ele, meter a mão.
É muito bacana poder contribuir dessa maneira também, servindo a outros, intermediando o
trabalho deles para um público
que talvez não tivesse oportunidade de conhecê-los, até por estarem inacessíveis. A Velha-Guarda
não gravava desde 88.
Esse trabalho abre uma frente
de direção artística em minha carreira. Abri um selo, Phonomotor,
que se associou a uma gravadora
grande porque não tem estrutura
de distribuição e comercialização,
mas é uma estrutura artística
100% independente. É licenciado
para a EMI, mas o master é meu.
Banquei o projeto, paguei a produção do disco. Meus álbuns vão
sair pelo selo também.
Quem determina o que vai ser
gravado e lançado no meu selo
sou eu, não preciso submeter a
departamentos. E eu estar ali já é
um aval, viabiliza o trabalho.
Mas não pretendo que seja um
selo tão ativo assim, não acho que
vá lançar cinco discos por ano. Serão esse, os meus e, talvez, daqui a
três ou quatro ou cinco anos, eu
tenha outra idéia de outro projeto. Mas, em princípio, não penso
em sair à cata de novos artistas,
nem tenho tempo para isso.
Folha - No ato de bancar um
disco que não é seu, quem aparece é a Marisa empresária?
Marisa - Mas isso já sou há muitos anos. Se eu lhe contar minha
estrutura empresarial, você pira, é
uma loucura. É uma equipe enorme, empresário, escritório, advogados, e vai crescendo.
Folha - Não é essa sua diferença com as jovens Elis Regina, Gal
Costa, Maria Bethânia, cantoras
de uma "fase heróica" da MPB?
Marisa - Acho muito difícil
comparar geração, o meio mudou
muito. A maneira de fazer mudou
muito, mas muito. Não sei se é
melhor ou pior, é uma evolução,
um pacotão. Em muitos sentidos,
acho que é uma melhora. Há mais
mercado, uma estrutura industrial muito mais estabelecida.
Folha - A atuação empresarial
não esfria a artística?
Marisa - É lógico que interfere,
mas acho que esquenta. Dá mais...
autoridade mesmo (ri). Não sou
autora só na hora de cantar, compor ou produzir, mas na hora de
pensar minha carreira como um
todo. Não sou minha própria empresária, mas tenho um pensamento de independência, que se
confunde muito com a independência artística também.
Folha - O projeto com a Velha-Guarda parece se adequar a isso, representando tanto um resgate incomum quanto algo que
serve à sua carreira, que vai ficar marcado dentro dela...
Marisa - Nem penso em carreira. Serve à minha pessoa, como
ouvinte e amante de música. Sou
apaixonada pelo que eles fazem. É
muito difícil separar o que é minha carreira do que é minha vida
pessoal. Não sei quando começo a
trabalhar nem quando termino.
Folha - Isso não é ruim?
Marisa - Não, eu acho maravilhoso. Não sei se fazer show com a
Velha-Guarda é mais prazer ou
trabalho. É isso que eles têm a ensinar também. O lance deles é totalmente de celebração. A música
deles é um meio de expressão, de
estar juntos, festejar, recordar,
homenagear, conviver. O princípio é este: o importante é ser feliz,
divertir-se. É nisso que acredito,
na minha carreira.
Folha - Nesse álbum, você retraça um trajeto que Paulinho
da Viola fez quando produziu
"Portela, Passado de Glória"
(70). Há uma ponte entre os
dois momentos?
Marisa - Os dois discos são projetos de jovens artistas se interessando, intermediando, tornando
possível. O que fiz é algo que acho
que alguém devia fazer, e ninguém estava fazendo. Ficar reclamando? Vamos fazer, tenho capacidade, posso fazer. Em 30 anos,
eles só têm três discos gravados. O
óbvio seria pegar coisas mais conhecidas, num disco cheio de
convidados, mas isso não privilegiaria eles, que são as estrelas.
O que eu queria era gravar coisas que estavam só na tradição
oral deles. Fizemos milhões de
reuniões, Paulinho mesmo é que
se lembrou da música que ele canta. Cristina Buarque tinha fitas
antigas, gravadas nos anos 70.
Tivemos uma equipe de pesquisa, levantamos a obra completa
de cada um dos cerca de 20 compositores do grupo, 350 músicas.
Nem dá para dizer que peguei tudo, Monarco mesmo falou: "Pô,
depois que passa... Ainda tem
mais coisa...". Isso não é meu, é do
mundo. Entreguei cópias para
eles. Quero dar para o Museu da
Imagem e do Som.
Só coloquei duas realmente conhecidas, "Minha Vontade" e
"Lenço", que eles mesmos nunca
haviam gravado, só para as pessoas saberem que são deles. De
"Corri pra Ver", eles fizeram a segunda parte agora. É uma coisa
curiosa do samba, tradicionalmente só existe a primeira, a segunda é improvisada. Com o advento das gravações, as pessoas
começaram a gravar as segundas,
e as segundas passaram a existir.
Mas, muitas vezes, essas segundas
são feitas 30 anos depois pelo parceiro. "Corri pra Ver" só tinha a
primeira, do Chico Santana, e
Monarco e Casquinha fizeram a
segunda agora, para o disco.
Folha - As velhas-guardas deixarem de interferir no Carnaval
é um sinal de que o samba esteja em extinção? Samba hoje é
pagode, axé?
Marisa - Acho que não só. Não
contraponho uma coisa à outra,
elas se somam e convivem. O público é quem faz o mercado, temos de trabalhar um pouquinho
mais na formação de um público
mais exigente. Se isso se tornar
economicamente interessante, a
gravadora vai se interessar. E
quem vai fazer ser é o público.
Folha - Fica mais interessante
para gravadoras, agora que há
essa onda em torno da música
da velha-guarda cubana?
Marisa - Artisticamente é muito
diferente, mas é a mesma geração,
e é tão rico e interessante quanto.
Como lá, não há o interesse em
mudar nada da arte deles. É bacana buscar a novidade pelo hiato
geracional, pela inacessibilidade.
Folha - Qual é o papel da produção num trabalho como esse?
Marisa - O espírito é a coletividade, todo mundo junto o tempo
todo. Mas procurei uma dinâmica para não ficar sempre a mesma
formação. Aí há as vinhetas, "seu"
Casemiro só com a cuíca, e assim
por diante. É como se fosse um
zoom em alguns deles. Só "seu"
Argemiro não quis.
Folha - Seu último disco, "Barulhinho Bom", é de 96. Por que
a demora em lançar o novo?
Marisa - Vendo de fora parece
muito tempo, mas da minha perspectiva não é. Produzi, fiz dois
anos e meio de turnê. É cada dia
um hotel, você acorda à noite,
"onde é o banheiro?", não pode
dar uma topada porque no outro
dia tem show. Tem que desenvolver uma capacidade de adaptação
absurda. Agora começa tudo de
novo, tenho agenda até o fim do
ano, sei onde vou estar em cada
dia, em agosto. Artisticamente é
emburrecedor, você fica isolado,
não convive com outros artistas.
Folha - Você está explicando aí
uma das chaves da acomodação
pelas quais muitos artistas passam no decorrer de suas carreiras? É emburrecedor?
Marisa - Isso é muito pessoal. É
para mim. Não ouço tanta música, não vejo tanto cinema. Não vejo os amigos, músicos, artistas
plásticos, escritores. A conversinha é importante, faz falta.
Folha - Às vésperas do novo
disco, você lança a Velha-Guarda, reaparece na mídia, participa de show. Isso faz parte de
uma estratégia empresarial?
Marisa - De jeito nenhum. Fiquei conhecida em show, demorei dois anos para gravar meu primeiro disco. Falaram que era estratégia, mas não tem estratégia.
Estratégia é ser feliz. Não lancei
antes a Velha-Guarda porque fiquei tentando um patrocínio.
Queria dar de brinde de fim de
ano por uma empresa que pagasse os custos do projeto. Não rolou.
Folha - Ninguém quis patrocinar a Velha-Guarda da Portela?
Marisa - Ninguém quis patrocinar a Velha-Guarda da Portela.
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