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MARCELO COELHO
"Beleza Americana" dissimula clichês
Até agora não vi ninguém falar
mal de "Beleza Americana", de
Sam Mendes, que estreará sexta-feira nos cinemas de São Paulo.
Talvez seja mesmo impossível falar mal de um filme tão simpático,
tão bem-dosado e cheio de surpresas.
Recomendo muito. Mas começo
a achar que os elogios a "Beleza
Americana" vão ficando distorcidos, como que numa competição
para ver quem gostou mais.
Segundo a revista "Época", um
crítico francês disse que a estréia
de Sam Mendes como diretor de
cinema "é a melhor" desde Orson
Welles em "Cidadão Kane". Uma
votação de internautas, diz a revista "Set", consagrou o filme como o segundo melhor da história,
depois de "O Poderoso Chefão".
Vê-se que "Beleza Americana"
agrada a tipos de público bem distintos, o que está longe de ser um
problema.
Mas as coisas vão ficando complicadas quando nem os críticos
entendem como é que um filme
tão bom pode ser candidato ao
Oscar; como uma história que critica o "american way of life" pode
obter tamanho sucesso de público;
como Steven Spielberg terminou
financiando um filme tão adulto.
Começo com essa última questão. Sam Mendes vira do avesso o
mundo convencional e ordeiro da
classe média americana, ao contar como um quarentão submisso
e medíocre (Kevin Spacey) larga o
emprego, se enche da mulher carreirista, e luta por uma felicidade
que sua vida certinha, integrada e
obrigatoriamente "feliz" não iria
nunca lhe proporcionar.
Kevin Spacey é de uma simpatia
total, irresistível. Mas qual o modelo de felicidade que o filme acaba retratando? Como o herói se liberta do "american way of life"?
Comprando um carro de brinquedo; comprando um carro de verdade; empregando-se numa lanchonete; voltando a fumar maconha; namorando a garota mais
linda do colégio...
Ou seja, retornando à adolescência. O filme de Sam Mendes,
saudado como "adulto", é, pelo
menos, ambíguo nesse aspecto
-pois não há nada mais típico
da escola de Spielberg do que a
vontade de ser sempre adolescente
e de apostar na confusão de faixas
etárias, que é uma das razões de
seu sucesso.
A idéia de um herói que rompe
com as convenções sociais, tão
bem usada em "Beleza Americana", é, por sua vez, americaníssima e convencionalíssima. Basta
pensar nos filmes de Frank Capra,
na década de 30.
Trata-se de renovar periodicamente a mensagem do "this is a
free country", e o artigo de fé americano, de que todos têm o direito
de buscar sua felicidade, etc.
O que é sempre entusiasmante e
democrático, sem dúvida. O problema é que esses elogios ao homem comum tendem sempre, no
cinema americano, a exigir heróis
absolutamente incomuns para
protagonizar a narrativa.
Claro que o filme será mais
adulto ou mais infantil se acabar
bem ou se acabar mal. Desde o
início de "Beleza Americana", sabemos que o herói vai morrer.
O efeito desse final está longe de
ser amargo, entretanto; sequer
confirma, a meu ver, o tom de denúncia, de crítica, que se atribui
ao filme. E há, de qualquer modo,
um casalzinho que foge daquele
mundo estreito para ser feliz... em
Nova York.
Dito assim, parece que "Beleza
Americana" é um clichê total.
Claro que não. Seu maior mérito,
na verdade, está em fazer com que
nenhum de seus clichês pareça
um clichê. Por isso todos gostam
dele, e eu também.
Esquecendo um pouco o termo,
obviamente pejorativo, de "clichê", pode-se dizer que o filme é
feito de uma mistura muito hábil
e coerente de inúmeros outros filmes americanos.
De "Lolita" aos filmes de psicopatas assassinos, de "Eyes Wide
Shut" a Peter Pan, de "Janela Indiscreta" às sitcoms da TV a cabo,
de "A Fortuna de Cookie" a um
desenho de Charlie Brown (Kevin
Spacey é como se Charlie Brown
virasse Snoopy de repente), "Beleza Americana" faz referência a
tudo o que já vimos, e está astuciosamente consciente disso. Permite comparações e paralelos infinitos, o que é certamente um
"tour de force" do diretor, mas é
também um modo de girar em
círculos.
Mas, falando em girar em círculos, talvez exista um real momento de subversão nessa deliciosa
salada de frutas com sorvete de
baunilha. É quando vemos, não o
filme de Sam Mendes, mas o vídeo que um personagem, suspeito
de loucura, exibe para a namorada.
Ricky Fitts (Wes Bentley) é um
adolescente com cara de retardado que passa o dia filmando cenas escondido; uma dessas cenas
é a de um saco de plástico vazio
num redemoinho de vento.
A dança daquele saco de plástico, que toma alguns minutos do
filme, e o comentário emocionante de Ricky, sobre a insuportável
beleza de todas as coisas, parecem
apontar para o tipo de cinema
que Sam Mendes de fato gostaria
de fazer. Mas ele concorre para o
Oscar, e a torcida já começou.
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