São Paulo, quarta-feira, 23 de fevereiro de 2000


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MARCELO COELHO
"Beleza Americana" dissimula clichês

Até agora não vi ninguém falar mal de "Beleza Americana", de Sam Mendes, que estreará sexta-feira nos cinemas de São Paulo. Talvez seja mesmo impossível falar mal de um filme tão simpático, tão bem-dosado e cheio de surpresas.
Recomendo muito. Mas começo a achar que os elogios a "Beleza Americana" vão ficando distorcidos, como que numa competição para ver quem gostou mais.
Segundo a revista "Época", um crítico francês disse que a estréia de Sam Mendes como diretor de cinema "é a melhor" desde Orson Welles em "Cidadão Kane". Uma votação de internautas, diz a revista "Set", consagrou o filme como o segundo melhor da história, depois de "O Poderoso Chefão".
Vê-se que "Beleza Americana" agrada a tipos de público bem distintos, o que está longe de ser um problema.
Mas as coisas vão ficando complicadas quando nem os críticos entendem como é que um filme tão bom pode ser candidato ao Oscar; como uma história que critica o "american way of life" pode obter tamanho sucesso de público; como Steven Spielberg terminou financiando um filme tão adulto.
Começo com essa última questão. Sam Mendes vira do avesso o mundo convencional e ordeiro da classe média americana, ao contar como um quarentão submisso e medíocre (Kevin Spacey) larga o emprego, se enche da mulher carreirista, e luta por uma felicidade que sua vida certinha, integrada e obrigatoriamente "feliz" não iria nunca lhe proporcionar.
Kevin Spacey é de uma simpatia total, irresistível. Mas qual o modelo de felicidade que o filme acaba retratando? Como o herói se liberta do "american way of life"? Comprando um carro de brinquedo; comprando um carro de verdade; empregando-se numa lanchonete; voltando a fumar maconha; namorando a garota mais linda do colégio...
Ou seja, retornando à adolescência. O filme de Sam Mendes, saudado como "adulto", é, pelo menos, ambíguo nesse aspecto -pois não há nada mais típico da escola de Spielberg do que a vontade de ser sempre adolescente e de apostar na confusão de faixas etárias, que é uma das razões de seu sucesso.
A idéia de um herói que rompe com as convenções sociais, tão bem usada em "Beleza Americana", é, por sua vez, americaníssima e convencionalíssima. Basta pensar nos filmes de Frank Capra, na década de 30.
Trata-se de renovar periodicamente a mensagem do "this is a free country", e o artigo de fé americano, de que todos têm o direito de buscar sua felicidade, etc.
O que é sempre entusiasmante e democrático, sem dúvida. O problema é que esses elogios ao homem comum tendem sempre, no cinema americano, a exigir heróis absolutamente incomuns para protagonizar a narrativa.
Claro que o filme será mais adulto ou mais infantil se acabar bem ou se acabar mal. Desde o início de "Beleza Americana", sabemos que o herói vai morrer.
O efeito desse final está longe de ser amargo, entretanto; sequer confirma, a meu ver, o tom de denúncia, de crítica, que se atribui ao filme. E há, de qualquer modo, um casalzinho que foge daquele mundo estreito para ser feliz... em Nova York.
Dito assim, parece que "Beleza Americana" é um clichê total. Claro que não. Seu maior mérito, na verdade, está em fazer com que nenhum de seus clichês pareça um clichê. Por isso todos gostam dele, e eu também.
Esquecendo um pouco o termo, obviamente pejorativo, de "clichê", pode-se dizer que o filme é feito de uma mistura muito hábil e coerente de inúmeros outros filmes americanos.
De "Lolita" aos filmes de psicopatas assassinos, de "Eyes Wide Shut" a Peter Pan, de "Janela Indiscreta" às sitcoms da TV a cabo, de "A Fortuna de Cookie" a um desenho de Charlie Brown (Kevin Spacey é como se Charlie Brown virasse Snoopy de repente), "Beleza Americana" faz referência a tudo o que já vimos, e está astuciosamente consciente disso. Permite comparações e paralelos infinitos, o que é certamente um "tour de force" do diretor, mas é também um modo de girar em círculos.
Mas, falando em girar em círculos, talvez exista um real momento de subversão nessa deliciosa salada de frutas com sorvete de baunilha. É quando vemos, não o filme de Sam Mendes, mas o vídeo que um personagem, suspeito de loucura, exibe para a namorada.
Ricky Fitts (Wes Bentley) é um adolescente com cara de retardado que passa o dia filmando cenas escondido; uma dessas cenas é a de um saco de plástico vazio num redemoinho de vento.
A dança daquele saco de plástico, que toma alguns minutos do filme, e o comentário emocionante de Ricky, sobre a insuportável beleza de todas as coisas, parecem apontar para o tipo de cinema que Sam Mendes de fato gostaria de fazer. Mas ele concorre para o Oscar, e a torcida já começou.


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