São Paulo, sábado, 23 de fevereiro de 2008

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Análise/exposição

Em Nova York, Jasper Johns exibe sua crítica radical à pintura

MARCO GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM NOVA YORK

O Metropolitan Museum de Nova York inaugurou, no último dia 5, uma exposição antológica de Jasper Johns, um dos maiores pintores americanos em atividade. Denominada "Jasper Johns: Gray" (cinza), ela fica em cartaz até 4 de maio.
Cento e dezenove obras estão dispostas em várias salas do museu e abrangem 50 anos de sua carreira. O fio condutor desta retrospectiva cromática é o cinza, presente em todas as obras. Segundo o artista, é uma das cores da sua predileção.
Em parceria com Rauschenberg, Johns abriu as portas para a arte pop americana. Ambos buscavam se contrapor ao expressionismo abstrato, tendência artística dominante nos anos 50 no cenário americano.
A chamada escola de Nova York abrangia diversos artistas com personalidades e estilos distintos, mas que, de maneira geral, faziam pinturas abstratas de grande escala, com gestualidade e cromatismo expressionista. Buscavam impregnar suas telas com a marca pessoal a fim de provocar impacto e emoção no observador.
Eram românticos e flertavam com o sublime, com uma forma de arte elevada e espiritual. Suas referências modernas eram Picasso e Matisse.
Entretanto, esta dupla de jovens artistas procurou o inverso: apagar a gestualidade expressionista, fazer uma pintura figurativa pautada na colagem e na fragmentação, buscar o aspecto concreto e literal da pintura, em suma, uma obra mais cerebral e menos intuitiva.
A referência devia ser oposta a de seu predecessores: Marcel Duchamp, que se contrapôs à Matisse e Picasso na maneira de fazer e pensar arte. A denominação pop surge posteriormente e se aplica com mais propriedade aos artistas que surgiram no inicio da década de 60, como Andy Warhol e Lichtenstein. Apesar de utilizarem imagens e objetos retirados do cotidiano -como uma cama, uma galinha empalhada, a bandeira americana, números-, tanto a obra de Rauschenberg como a de Johns são extremamente sofisticadas.

Neutralidade
A cor cinza se ajusta à obra de Johns pelo seu aspecto neutro, menos lírico e mais artificial.
Aparentemente monocromática, a exposição revela nuanças cromáticas que estão intimamente ligadas ao material empregado: encáustica, tinta à óleo, acrílico, no caso das pinturas; grafite, nos desenhos, e bronze, chumbo e prata nos relevos. As marcas da fatura carregam uma camada espessa material que reitera a presença objetiva da superfície da tela, mas, ao mesmo tempo, reduz seu potencial expressivo pela sua opacidade, como no caso da encáustica. Além de grande pintor, Johns é gravador e exímio desenhista, realiza também objetos desconcertantes como no caso da escultura de um óculos que, em vez de mostrar os olhos, contém duas bocas que indicam, segundo o título, o olhar do crítico.
A visão está imbricada com a palavra e o conceito no mundo contemporâneo. Johns procura a todo instante questionar o que estamos vendo de fato, suas obras sempre se apresentam como paradoxos visuais. Neste sentido é que podemos entender porque uma exposição intitulada "cinza" começa com uma de suas obras-primas, intitulada "False Start", que é toda colorida e parece simular quadro expressionista abstrato.
"False Start" é, a meu ver, o primeiro quadro onde Johns joga radicalmente com as diferentes maneiras de perceber as cores. Nesta pintura, manchas cromáticas entram em conflito com as palavras aplicadas sobre elas: Johns denomina de amarelo uma superfície azul, uma mancha vermelha tem o nome de laranja e assim por diante.
A presença da cor na nossa sensação não mais corresponde ao significado da palavra aplicada. A identidade da cor é posta em xeque, pois dois critérios de identificação são utilizados simultaneamente, um se contrapondo ao outro.
Esta atitude atinge seu ápice crítico com essa pintura de Johns, onde o conceito que define o que são as cores entra em choque com nossa capacidade de ver as cores. O resultado é aturdir e desqualificar nossa percepção. Na verdade, o cinza apareça apenas na palavras escritas, ou seja, em uma dimensão mental e não perceptiva.
Para muitos teóricos, o cinza é uma espécie de ausência de cor, visto que advém da mistura ótica de cores complementares. "False Start" remete ao termo utilizado quando um cavalo refuga durante a corrida: é preciso recomeçar a largada. O jogo está suspenso. Johns foi profundamente influenciado pela crítica que Duchamp fez da maneira como vemos um objeto de arte. O que passa a constituir a obra não é mais o objeto em si, mas a maneira como nos preparamos para vê-la. Faz-se, deste modo, uma crítica radical à pintura como algo que se realiza exclusivamente na retina do observador. Para Duchamp, a cor que está no tubo de tinta já é um "ready made". A arte existe no interior de uma linguagem artística já desenvolvida.
Ela se constitui agora mediante uma linguagem, um pensamento visual previamente estabelecido. De certa forma, toda pintura explicita seus esquemas conceituais que moldam o nosso olhar.
Ao iniciar a exposição com "False Start" Johns coloca o espectador em estado de alerta, receoso de dar um passo em falso. A exposição prossegue com imagens cinzas de bandeiras, alvos, mapas. Muitas vezes Johns retoma um tema que utilizara 40 anos antes, como na bandeira de 1994. Mas o tema pouco importa, os processos de fazer e entender as regras da construção da imagem é que estão sendo continuamente questionados.

Imagens ambíguas
A partir da década de 80 sua pintura parece ser mais intimista, revelando interiores onde Johns comenta uma série de imagens ambíguas. Talvez este conjunto não revele a inquietude das pinturas anteriores.
A partir de 1997, surge o tema da catena, uma linha curva utilizada na engenharia da construção de pontes suspensas. A pintura parece dobrar sob si mesma, a linha real projeta uma sombra sobre a superfície cinzenta da tela que, por sua vez, parece desestabilizar a linha real. Duchamp, certa vez, jogou uma linha de um metro ao acaso. Em cada uma de suas configurações espaciais ele fez uma régua.
Em seguida, fez uma caixa onde dispôs as três réguas com desenhos diferentes. A medida real do metro parece se contrapor às réguas retratadas. Da mesma maneira, a catena sugere medidas distintas. Seguindo a linha dos grandes mestres da pintura, Johns faz nesta última série uma reflexão sobre os limites da linguagem pictórica, cria uma nova regra, o jogo recomeça mais uma vez.


MARCO GIANNOTTI é pintor e professor da Escola de Comunicação e Artes da USP

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