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Análise/exposição
Em Nova York, Jasper Johns exibe sua crítica radical à pintura
MARCO GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM NOVA YORK
O Metropolitan Museum
de Nova York inaugurou, no último dia 5,
uma exposição antológica de
Jasper Johns, um dos maiores
pintores americanos em atividade. Denominada "Jasper
Johns: Gray" (cinza), ela fica
em cartaz até 4 de maio.
Cento e dezenove obras estão
dispostas em várias salas do
museu e abrangem 50 anos de
sua carreira. O fio condutor
desta retrospectiva cromática é
o cinza, presente em todas as
obras. Segundo o artista, é uma
das cores da sua predileção.
Em parceria com Rauschenberg, Johns abriu as portas para a arte pop americana. Ambos
buscavam se contrapor ao expressionismo abstrato, tendência artística dominante nos
anos 50 no cenário americano.
A chamada escola de Nova
York abrangia diversos artistas
com personalidades e estilos
distintos, mas que, de maneira
geral, faziam pinturas abstratas
de grande escala, com gestualidade e cromatismo expressionista. Buscavam impregnar
suas telas com a marca pessoal
a fim de provocar impacto e
emoção no observador.
Eram românticos e flertavam com o sublime, com uma
forma de arte elevada e espiritual. Suas referências modernas eram Picasso e Matisse.
Entretanto, esta dupla de jovens artistas procurou o inverso: apagar a gestualidade expressionista, fazer uma pintura
figurativa pautada na colagem e
na fragmentação, buscar o aspecto concreto e literal da pintura, em suma, uma obra mais
cerebral e menos intuitiva.
A referência devia ser oposta
a de seu predecessores: Marcel
Duchamp, que se contrapôs à
Matisse e Picasso na maneira
de fazer e pensar arte. A denominação pop surge posteriormente e se aplica com mais
propriedade aos artistas que
surgiram no inicio da década de
60, como Andy Warhol e Lichtenstein. Apesar de utilizarem
imagens e objetos retirados do
cotidiano -como uma cama,
uma galinha empalhada, a bandeira americana, números-,
tanto a obra de Rauschenberg
como a de Johns são extremamente sofisticadas.
Neutralidade
A cor cinza se ajusta à obra de
Johns pelo seu aspecto neutro,
menos lírico e mais artificial.
Aparentemente monocromática, a exposição revela nuanças
cromáticas que estão intimamente ligadas ao material empregado: encáustica, tinta à
óleo, acrílico, no caso das pinturas; grafite, nos desenhos, e
bronze, chumbo e prata nos relevos. As marcas da fatura carregam uma camada espessa
material que reitera a presença
objetiva da superfície da tela,
mas, ao mesmo tempo, reduz
seu potencial expressivo pela
sua opacidade, como no caso da
encáustica. Além de grande
pintor, Johns é gravador e exímio desenhista, realiza também objetos desconcertantes
como no caso da escultura de
um óculos que, em vez de mostrar os olhos, contém duas bocas que indicam, segundo o título, o olhar do crítico.
A visão está imbricada com a
palavra e o conceito no mundo
contemporâneo. Johns procura a todo instante questionar o
que estamos vendo de fato, suas
obras sempre se apresentam
como paradoxos visuais. Neste
sentido é que podemos entender porque uma exposição intitulada "cinza" começa com
uma de suas obras-primas, intitulada "False Start", que é toda
colorida e parece simular quadro expressionista abstrato.
"False Start" é, a meu ver, o
primeiro quadro onde Johns
joga radicalmente com as diferentes maneiras de perceber as
cores. Nesta pintura, manchas
cromáticas entram em conflito
com as palavras aplicadas sobre
elas: Johns denomina de amarelo uma superfície azul, uma
mancha vermelha tem o nome
de laranja e assim por diante.
A presença da cor na nossa
sensação não mais corresponde ao significado da palavra
aplicada. A identidade da cor é
posta em xeque, pois dois critérios de identificação são utilizados simultaneamente, um se
contrapondo ao outro.
Esta atitude atinge seu ápice
crítico com essa pintura de
Johns, onde o conceito que define o que são as cores entra em
choque com nossa capacidade
de ver as cores. O resultado é
aturdir e desqualificar nossa
percepção. Na verdade, o cinza
apareça apenas na palavras escritas, ou seja, em uma dimensão mental e não perceptiva.
Para muitos teóricos, o cinza
é uma espécie de ausência de
cor, visto que advém da mistura
ótica de cores complementares. "False Start" remete ao termo utilizado quando um cavalo
refuga durante a corrida: é preciso recomeçar a largada. O jogo está suspenso.
Johns foi profundamente influenciado pela crítica que Duchamp fez da maneira como vemos um objeto de arte. O que
passa a constituir a obra não é
mais o objeto em si, mas a maneira como nos preparamos
para vê-la. Faz-se, deste modo,
uma crítica radical à pintura
como algo que se realiza exclusivamente na retina do observador. Para Duchamp, a cor que
está no tubo de tinta já é um
"ready made". A arte existe no
interior de uma linguagem artística já desenvolvida.
Ela se constitui agora mediante uma linguagem, um
pensamento visual previamente estabelecido. De certa forma,
toda pintura explicita seus esquemas conceituais que moldam o nosso olhar.
Ao iniciar a exposição com
"False Start" Johns coloca o espectador em estado de alerta,
receoso de dar um passo em falso. A exposição prossegue com
imagens cinzas de bandeiras,
alvos, mapas. Muitas vezes
Johns retoma um tema que utilizara 40 anos antes, como na
bandeira de 1994. Mas o tema
pouco importa, os processos de
fazer e entender as regras da
construção da imagem é que
estão sendo continuamente
questionados.
Imagens ambíguas
A partir da década de 80 sua
pintura parece ser mais intimista, revelando interiores onde Johns comenta uma série de
imagens ambíguas. Talvez este
conjunto não revele a inquietude das pinturas anteriores.
A partir de 1997, surge o tema
da catena, uma linha curva utilizada na engenharia da construção de pontes suspensas. A
pintura parece dobrar sob si
mesma, a linha real projeta
uma sombra sobre a superfície
cinzenta da tela que, por sua
vez, parece desestabilizar a linha real. Duchamp, certa vez,
jogou uma linha de um metro
ao acaso. Em cada uma de suas
configurações espaciais ele fez
uma régua.
Em seguida, fez uma caixa
onde dispôs as três réguas com
desenhos diferentes. A medida
real do metro parece se contrapor às réguas retratadas.
Da mesma maneira, a catena
sugere medidas distintas. Seguindo a linha dos grandes
mestres da pintura, Johns faz
nesta última série uma reflexão
sobre os limites da linguagem
pictórica, cria uma nova regra,
o jogo recomeça mais uma vez.
MARCO GIANNOTTI é pintor e professor da
Escola de Comunicação e Artes da USP
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