São Paulo, Terça-feira, 23 de Fevereiro de 1999
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Acabou o papo-furado da "globalização inocente"

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
Eu vagueio pelos jornais e revistas de economia, como um louco, tentando entender o que nos aconteceu. E vou catando indícios, na esperança de que algo possa ajudar na formulação de uma política "crítica" que defendesse nossa localidade brasileira. O elogio da "complexidade", das forças ocultas que provocaram a grande crise global, o apelo excessivo ao "indeterminismo" só nos paralisa. Como podemos entender o que nos aconteceu? Como armamento, só temos as velhas carabinas esquemáticas do antigo "nacional", que a burrice e o oportunismo estão encampando gostosamente -vejam o surgente MRIF ("Movimento Revolucionário Itamar Franco" -o "Exército brancaleone" das oposições sem rumo).
Lendo ensaios de economistas alternativos como Paul Krugman, Jeffrey Sachs e, recentemente, a excelente série de quatro artigos de Nicholas D. Kristof ("O Contágio Global") no "NY Times", sem contar frases soltas, peruadas, chutes de economistas do mundo todo, já dá para fazer a listinha de algumas evidências que vão clarear a história desta época gelatinosa. Algumas "trêmulas certezas":
a política de abrir mercados, a qualquer custo, foi a única ideologia do Tesouro americano e do FMI, enfunados pelos ventos do pós-guerra fria. Eufóricos com a "vitória" da "democracia", nome que eles dão ao "mercado aberto", no seu eterno raciocínio de curto prazo, os EUA forçaram a barra no mundo, impondo, com a truculência anglo-saxã, uma lógica contábil americana. Esse "programa de ação", formulado no papel, veio desde o início da primeira campanha de Clinton à presidência. Abriram fronteiras no peito, estimulados pelos representantes do capital financeiro que apoiaram o galã de Monica Lewinsky: os bancos, as companhias de seguros e corretoras -a "indústria financeira" de Wall Street, que a-do-rou a febre de "take overs" e "mergers" na Ásia e América Latina.
Essa política, sob as aparências de "modernização do mundo" foi, no duro, uma fórmula única, a tática de "cobertor" para todos os países, sem contemplar diferenças culturais, detalhes estruturais das nações.
O "crash" não se deveu apenas ao "clientelismo" ("cronyism" -a palavra mágica que eles pespegam em todos os governos "emergentes"). Nós não prestamos, sem dúvida, mas a grande parte da culpa se deve aos formuladores dessa política em Washington, aos vorazes banqueiros ocidentais que enfiaram dinheiro goela abaixo dos asiáticos. É culpa também, claro, dos burocratas "sub" que chafurdaram no dinheiro que jorrava para fazer empreendimentos deslumbrados e luxuosos. Três foram os excessos dos "emergentes", como diz o artigo de Kristof: excessivo endividamento, excessivo investimento e capacidade excessiva sem demanda.
Os países da Ásia (e, agora, nós, já por baixo da carne-seca...) eram "playgrounds" para grandes picaretagens chamadas de "carry trade", que podemos traduzir por "bicicletinhas", "barrigas de aluguel" ou outras sinistras pilherias que os estouvados rapazes do mercado inventam. Maravilhoso esporte: pegar empréstimos em yen a 2% ou em dólar a 4%, comprar bastante ""bahts" ou "reais" e aplicar nos altos juros locais. Depois, antes da desvalorização das miseráveis moedas supercotadas, voltar alegremente para o mundo desenvolvido.
Modernidade tem dono. "Modernização" é adaptar o mundo às necessidades de expansão de seus capitais. Mais nada. Tanta é a força negocial dos americanos que corta a esperança de criarmos alternativas de "terceira via", como FHC achou que conseguiria (tentou?). Apesar dos sorrisos de Clinton chutando a bola com Pelé na Mangueira, é impensável qualquer "nuance" para americanos. Não há isso. Só raciocinam por "ou/ou"; nunca "e/e".
Acaba o mito da "inocência" da globalização. O que está em jogo é hegemonia. O resto é papo. A política econômica dos USA foi tocada como uma operação de guerra. O Robert Rubin chegou a se comparar ao McNamara durante a guerra do Vietnã: "Fomos muito invasivos, como fomos no Vietnã". No Tesouro americano há um "Salão de Guerra" (War Room). Nas reuniões, até a CIA vai. Quando o Japão pensou em criar um FMI oriental de salvação para a Ásia, Rubin e Larry Summers correram, uivando de ódio como "marines" para segurar os "japorongas". "Isso ameaçaria nossa influência na Ásia", disseram. São tão auto-suficientes que não escondem nada. Durante a queda da Indonésia na miséria (mais de 50% abaixo do nível de pobreza), os estudantes quebraram o pau na rua. Rubin: "Se ao menos a falência da Indonésia tivesse sido durante as férias estudantis, teria sido melhor para a transição".
Americano também é clientelista e protecionista. Ver a ajuda ao "hedge fund" LTMC, quando o FED em pânico arranjou bilhões em meia hora para os elegantes especuladores.
Vejam também a denúncia contra o nosso aço exportado para os USA, semana passada.
O mundo está "alavancado". A riqueza que ronda é duplamente virtual. Primeiro porque não corresponde à produção real de mercadorias. São dígitos impalpáveis boiando no ciberespaço. E, pior ainda, são papéis "alavancados", com pouca ancoragem no mundo real do valor. Um fantasma dentro do outro. Pega-se dinheiro em banco para apostar em futuro de derivativos. E o futuro não pode chegar nunca, senão o mundo quebra.
Com as "burras" entupidas do dinheiro fugido do mundo todo, com a esquadra lastreando a moeda, eles dizem que a culpa foi nossa, dos "underdogs". Ou que a crise teria sido "blessing in disguise" (uma benção disfarçada) para nós aprendermos a ser iguais a eles. Agora, deram para fazer autocrítica, que é a última moda no Tesouro. O ex-vice Walter Mondale disse: "Deveríamos ter sido mais humildes". Greenspan falou em "hubris" ("desmesura" em grego, palavra que eles adoram e usam quando sua ambição sai pela culatra). Fischer (ou Summers?) falou em "entender a fragilidade dos países etc.". Mentira. Nunca pensaram nisso. A prudência teórica nunca vence a fome de lucro imediato. Além disso, é mole fazer autocrítica com o bolso cheio do trilhão que entrou em T-bonds no último ano. Difícil é fazer "mea-culpa", roendo rapadura no meio-fio. Baterão no peito até a próxima "hubris" especulativa.
Uma certeza: só haverá a tal "nova arquitetura econômica global" ou novo "Bretton Woods" no dia em que a crise aportar nos USA. Enquanto eles não sentirem o cheiro do prejuízo, não mudarão. A obstinação a-crítica desses homens é visível em qualquer elevador de banco em NY.
Outra certeza: os países da Ásia que deram uma "melhoradinha" foram os dois que desobedeceram o FMI: a Malásia, controlando capitais, e a Coréia do Sul, renegociando a dívida externa. Por que não cogitamos um diferencial qualquer para nosso caso? Mistérios tucanos. Por que não baixamos os juros logo depois da desvalorização, quando pintou um clima favorável? "Para o FMI não dar o braço a torcer ao Jeffrey Sachs?" - perguntou o Krugman, o "nemesis" do Fraga?
E, finalmente, o grande segredo de que ninguém fala: é um erro acharmos que há dois capitalismos -um, "virtuoso" e produtivo, e o outro, "malvadinho" e especulativo. Não há mais essa divisão. Com a crise de produção e demanda, sem a especulação virtual, quebra tudo. O cassino especulativo serve para esconder a próxima grande crise do capitalismo, até mesmo dos capitalistas. É a peneira com que tampam os olhos.


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