São Paulo, terça-feira, 23 de março de 2004

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FERNANDO BONASSI

Europa Europa

 Texto para o espetáculo "Arena Conta Danton", em montagem pela Cia.Livre de Teatro, baseado em Georg Büchner

Ah, Europa, velha Europa! Ainda no século 19 era uma roça, e vejam só agora, cercada de arquitetura assinada por todos os lados! Europa, à cuja menção os calabreses e galegos exilados nesta América rangem de horror. Europa do sexo explícito, da maconha liberada, das cortes decapitadas. Europa dos massacres organizados, dos muros derrubados, dos rapazes viciados. Como prescindir do teu charme iluminista, do melhor jazz importado, dos cigarros cancerígenos fumados no enlevo dos cafés embasbacados de cultura?
Não se trata de preconceito: o que você mata no atacado das guerras, nos suicidamos no varejo da paz, nesses tiros mal trocados entre miseráveis sem farda de um lado e miseráveis fardados do outro.
Nós nos tornamos existencialistas, religiosamente, rezando diante de imagens banidas em nome do bom gosto protestante. Nós gostamos: peregrinamos teus museus de ar-condicionado, onde o moderno foi domado pra manter-se eterno. Eu mesmo sou um desses a filmar as ruínas das tuas trincheiras e as lixeiras de teus campos de concentração. Tenho tudo aqui em DVD, num equipamento japonês de última geração!
Aliás, era mesmo preciso navegar pelos temperos do Oriente, que as carnes não cheiravam bem nas cozinhas dos palácios! E nada mais europeu do que se lançar ao mar de qualquer jeito, com coragem, com bravura, com despeito, passando sermão e uma certa idéia de Deus à indiada matuta! Nós, do nosso lado, pelas origens que gostaríamos de ter, cruzamos tantos oceanos quantos foram necessários, em aviões, ilustrações e balsas, na busca de oportunidades que não temos nessas terras. Mas... quando deixou de haver espaço pra todos nós, de ambivalentes cidadanias?
Europa, pra que lado de fora do teu planeta serão expelidos os excluídos?
A África, por exemplo, é bem grande, mas seria injusto conosco ficarmos longe disso: onde quase nada comem mais de meio milhão de latinos habitantes, outros desenganados pelos fundos monetários podem pastar mazelas em nossa companhia.
Ah, Europa, o que há de certo por todas essas notícias espantosas que nos chegam dos cabos assanhados? O que fez os holandeses barrarem o Atlântico aumentando-lhe o mapa é o mesmo que os faz achar por bem mandar de volta esses 20 e tantos milhares de maus imigrantes? E, se a Polônia transformar-se num corredor infinito, onde comunistas mafiosos passeiem de fardas ultrapassadas pra venderem como suvenires no portão de Brandenburgo?
Quanto a isso os alemães até que são legais; isto é, mais apegados às leis.
Os portugueses também têm muitas dificuldades em se livrar das ex-colônias, agora que elas não servem pra nada, pá!
Acontece que uma bomba foi plantada nos trilhos da Espanha, e todos tememos pela falta de direção que as coisas podem tomar nessas reações bruscas, francas, bascas, catalãs ou castelhanas.
Como endurecer as leis francesas contra os ilegais? O que um ilegal tem a ver com isso de lei? Ou supõem que um ilegal reconhece apenas nisso sua falta de direitos?
A fome é um pecado mortal e a excitação de chegar aos teus portos inseguros pode levar a algo semelhante, seja numa invasão pelas costas douradas normandas, entre mariscos fritos e vinho branco ou feito cadáveres esquisitos, afogados nos contêineres de pó-da-china desses novos navios negreiros. Ah, Europa, quem servirá a papoula do esquecimento, se todos esses loucos estrangeiros forem mandados de volta à sanha dos economistas de seus governos mais ou menos nacionais? Você pensou nisso? Você está pensando ou perdeu teus melhores juízos?
Europa, a tua democracia é um presente dos gregos, não esqueça! O que os Estados Unidos têm a ver com esses fatos? Você ainda recebeu um Plano Marshall, e nós, com aqueles instrutores militares palpitando nos destinos? É justo? Quem liga pra justiça que se faz em Haia, se é nessas fronteiras griladas que se enterra a maioria dos cadáveres sem julgamento? Aliás, quem venceu a guerra suja? Quando a coisas estarão às claras? Em relação a quem mesmo? São esses que estão do outro lado? Qual deles?
O que você pode nos dizer quanto a isso, Europa? É tudo pra inglês ver na BBC?
Será que só a pedofilia poderá rivalizar com a burrice dos terroristas nas pautas das tuas revistas? Quantos escândalos financeiros serão necessários pra que os executivos de laticínios não nos façam chorar o leite derramado em confiança nos teus potinhos de iogurte? Europa, quem vai pagar a conta desses deslizes?
Há quem diga que a força de uma moeda forte fortificou os que eram sólidos, lançando os desesperados na inveja e no ressentimento da instabilidade; é essa a tua verdade, velha Europa? Teus desempregados já estão mentalmente preparados pra erguerem o tapete das revoluções? Quantos inocentes irão pelos ares com o nosso amor desprezado? Pelo visto, a fraternidade e a liberdade até que são prováveis, mas isso de igualdade vai depender de novas resoluções vetáveis no Parlamento...
Europa, é possível que esses sistemas inteligentes não nos contenham e que venhamos a comer-te pelas bordas, pois onde há ideais veneráveis também pode haver doenças venéreas, já que o desejo é comum a todos os seres racionais por natureza.
Ah, Europa! Quando você passará de uma grande idéia?
Europa, você é irresistível!


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