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FERNANDO BONASSI
Europa Europa
Texto para o espetáculo "Arena Conta Danton", em montagem pela Cia.Livre de Teatro, baseado em Georg
Büchner
Ah, Europa, velha Europa!
Ainda no século 19 era uma
roça, e vejam só agora, cercada de
arquitetura assinada por todos os
lados! Europa, à cuja menção os
calabreses e galegos exilados nesta América rangem de horror.
Europa do sexo explícito, da maconha liberada, das cortes decapitadas. Europa dos massacres organizados, dos muros derrubados, dos rapazes viciados. Como
prescindir do teu charme iluminista, do melhor jazz importado,
dos cigarros cancerígenos fumados no enlevo dos cafés embasbacados de cultura?
Não se trata de preconceito: o
que você mata no atacado das
guerras, nos suicidamos no varejo
da paz, nesses tiros mal trocados
entre miseráveis sem farda de um
lado e miseráveis fardados do outro.
Nós nos tornamos existencialistas, religiosamente, rezando
diante de imagens banidas em
nome do bom gosto protestante.
Nós gostamos: peregrinamos teus
museus de ar-condicionado, onde
o moderno foi domado pra manter-se eterno. Eu mesmo sou um
desses a filmar as ruínas das tuas
trincheiras e as lixeiras de teus
campos de concentração. Tenho
tudo aqui em DVD, num equipamento japonês de última geração!
Aliás, era mesmo preciso navegar pelos temperos do Oriente,
que as carnes não cheiravam bem
nas cozinhas dos palácios! E nada
mais europeu do que se lançar ao
mar de qualquer jeito, com coragem, com bravura, com despeito,
passando sermão e uma certa
idéia de Deus à indiada matuta!
Nós, do nosso lado, pelas origens
que gostaríamos de ter, cruzamos
tantos oceanos quantos foram necessários, em aviões, ilustrações e
balsas, na busca de oportunidades que não temos nessas terras.
Mas... quando deixou de haver
espaço pra todos nós, de ambivalentes cidadanias?
Europa, pra que lado de fora do
teu planeta serão expelidos os excluídos?
A África, por exemplo, é bem
grande, mas seria injusto conosco
ficarmos longe disso: onde quase
nada comem mais de meio milhão de latinos habitantes, outros
desenganados pelos fundos monetários podem pastar mazelas
em nossa companhia.
Ah, Europa, o que há de certo
por todas essas notícias espantosas que nos chegam dos cabos assanhados? O que fez os holandeses barrarem o Atlântico aumentando-lhe o mapa é o mesmo que
os faz achar por bem mandar de
volta esses 20 e tantos milhares de
maus imigrantes? E, se a Polônia
transformar-se num corredor infinito, onde comunistas mafiosos
passeiem de fardas ultrapassadas
pra venderem como suvenires no
portão de Brandenburgo?
Quanto a isso os alemães até
que são legais; isto é, mais apegados às leis.
Os portugueses também têm
muitas dificuldades em se livrar
das ex-colônias, agora que elas
não servem pra nada, pá!
Acontece que uma bomba foi
plantada nos trilhos da Espanha,
e todos tememos pela falta de direção que as coisas podem tomar
nessas reações bruscas, francas,
bascas, catalãs ou castelhanas.
Como endurecer as leis francesas contra os ilegais? O que um
ilegal tem a ver com isso de lei?
Ou supõem que um ilegal reconhece apenas nisso sua falta de
direitos?
A fome é um pecado mortal e a
excitação de chegar aos teus portos inseguros pode levar a algo semelhante, seja numa invasão pelas costas douradas normandas,
entre mariscos fritos e vinho
branco ou feito cadáveres esquisitos, afogados nos contêineres de
pó-da-china desses novos navios
negreiros. Ah, Europa, quem servirá a papoula do esquecimento,
se todos esses loucos estrangeiros
forem mandados de volta à sanha
dos economistas de seus governos
mais ou menos nacionais? Você
pensou nisso? Você está pensando
ou perdeu teus melhores juízos?
Europa, a tua democracia é um
presente dos gregos, não esqueça!
O que os Estados Unidos têm a
ver com esses fatos? Você ainda
recebeu um Plano Marshall, e
nós, com aqueles instrutores militares palpitando nos destinos? É
justo? Quem liga pra justiça que
se faz em Haia, se é nessas fronteiras griladas que se enterra a
maioria dos cadáveres sem julgamento? Aliás, quem venceu a
guerra suja? Quando a coisas estarão às claras? Em relação a
quem mesmo? São esses que estão
do outro lado? Qual deles?
O que você pode nos dizer
quanto a isso, Europa? É tudo pra
inglês ver na BBC?
Será que só a pedofilia poderá
rivalizar com a burrice dos terroristas nas pautas das tuas revistas? Quantos escândalos financeiros serão necessários pra que os
executivos de laticínios não nos
façam chorar o leite derramado
em confiança nos teus potinhos
de iogurte? Europa, quem vai pagar a conta desses deslizes?
Há quem diga que a força de
uma moeda forte fortificou os que
eram sólidos, lançando os desesperados na inveja e no ressentimento da instabilidade; é essa a
tua verdade, velha Europa? Teus
desempregados já estão mentalmente preparados pra erguerem o
tapete das revoluções? Quantos
inocentes irão pelos ares com o
nosso amor desprezado? Pelo visto, a fraternidade e a liberdade
até que são prováveis, mas isso de
igualdade vai depender de novas
resoluções vetáveis no Parlamento...
Europa, é possível que esses sistemas inteligentes não nos contenham e que venhamos a comer-te
pelas bordas, pois onde há ideais
veneráveis também pode haver
doenças venéreas, já que o desejo
é comum a todos os seres racionais por natureza.
Ah, Europa! Quando você passará de uma grande idéia?
Europa, você é irresistível!
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