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CARLOS HEITOR CONY
Um filme de Kurosawa e a moça da praça São Marcos
Num filme de Akira Kurosawa cujo nome não lembro
agora, o personagem principal
perde a mulher após muitos anos
de casamento. Sonha todas as
noites com ela. Inconsolável, como convém aos viúvos decentes,
ele pensa em se matar, num ato
que não chega a ser de desespero.
Japonês igualmente decente não
se desespera; o suicídio nada mais
é do que um rito de passagem,
uma cerimônia religiosa conhecida por todos nós com o nome de
haraquiri, que não sei exatamente o que significa, mas deve significar alguma coisa importante e
-mais uma vez- decente.
Apesar de tamanha decência,
um amigo o dissuade com um argumento definitivo: o viúvo não
se resigna à viuvez, não pode viver sem a companhia da mulher
que amou e que agora está morta.
Praticando o haraquiri, ele não
mais sonharia com a mulher, matando-a mais uma vez, negando-lhe a vida que ela continuava a
ter, aparecendo em seus sonhos,
tal como era em vida, repartindo
com ele os mil acidentes de cada
dia, alguns verdadeiros, outros
criados pela poderosa fertilidade
dos sonhos.
O petardo atingiu o alvo, e o
viúvo desistiu do suicídio. Deu a
volta por cima, continuou vivendo e comendo seus peixes crus todas as manhãs (não sei se japonês
come peixe cru todas as manhãs,
mas deixa pra lá).
Para ser sincero, quando vi o filme, achei uma besteira que o Nelson Rodrigues classificaria de
"atroz". Sonhar com pessoas e
coisas que amamos e não mais
existem é alimento substancial
para fossas colossais. Lembro um
personagem famoso na Ipanema
dos anos 70, cujo apelido era Hugo Bidê. Foi personagem de história em quadrinhos feita pelo Jaguar e era um dos destaques mais
visíveis da banda local que saía
no domingo anterior ao Carnaval.
O apelido deveu-se a uma folclórica feijoada que ele serviu aos
amigos. Como não tinha panela
nem vasilhame suficiente para
botar o feijão monumental que
preparou, lavou o bidê de seu
apartamento, botou a tampa e
serviu a feijoada aos amigos e derivados que apareceram em seu
apartamento na praça General
Osório, se não me engano, era em
cima do Jangadeiros, bar que não
mais existe, pelo menos com igual
fama e freguesia.
Bidê suicidou-se com um tiro
na boca, antes dos 40 anos. Todas
as noites sonhava com sua amiga
Leila Diniz, que morrera num
acidente de avião, parece que na
Índia. Leila era madrinha da
banda, musa do bairro e, ao que
consta, não tivera caso nenhum
com Bidê, eram apenas bons amigos.
Não suportou acordar todos os
dias depois da noite em que Leila
sempre lhe aparecia, viva, recriando momentos idos e vencidos e, sobretudo, momentos que
não existiram na vida real. A solução foi o tiro da boca, gesto que
a moça certamente não aprovaria.
Bem, antes que me acusem de
cometer uma crônica excessivamente carioca, com a citação
obrigatória do Nelson Rodrigues,
a citação eventual do Jaguar e a
evocação de dois ícones ipanemenses, mais personagens do Ruy
Castro e do Nelsinho Motta que
meus, volto ao filme do Kurosawa
cujo nome ainda não lembro.
Durante anos me angustiava
com sonhos que me traziam pessoas que não mais existem, com
situações que não mais enfrento.
Lamentava não poder controlá-los. Agora, acho até melhor assim,
sonhar com coisas e pessoas não
programadas pela saudade ou
pela memória. Se cada noite eu
me determinasse, hoje sonharei
com aquela moça que conheci
numa gôndola, em Veneza, hoje
sonharei com o pai fabricando
um xarope à base de creosoto, codeína e mel para curar minha
tosse, desconfio que não teria graça.
Bom mesmo é deitar, invocar
santos protetores e ficar disponível para o que der e vier. Evidente
que nem sempre aparecem situações e pessoas agradáveis, são
matérias de sonho. Quando acabam, além do alívio, fico feliz ao
constatar que tudo poderia ter sido pior.
Contudo, nenhum pesadelo, por
mais cruel que seja, pode bagunçar o coreto noturno, o circo de
fantasmas e duendes que me freqüentam, num carrossel maravilhoso em que tudo volta a ser como era, e até melhor.
Falei acima na moça que conheci numa gôndola em Veneza.
Acho que exagerei. Não conheci
moça nenhuma em nenhuma
gôndola veneziana. Na realidade,
a conheci prosaicamente, num
shopping center paulista. Nem sequer morreu, sei que continua viva, deve estar terminando um
curso qualquer na USP ou na
PUC. Pior: nunca andei de gôndola com ela, nem em Veneza
nem no lago do Ibirapuera. Mas
volta e meia sonho com ela, nos
mais estranhos lugares e situações.
Noite dessas, sonhei sim, tomávamos uma bebida verde e viscosa, ouvindo os músicos da praça
São Marcos tocando um foxe antigo, talvez "Hindustan", ou coisa
parecida. Aquelas enormes bandeiras grenás, com o leão dourado, símbolo da cidade, estavam
agitadas pelo vento leve que vinha do Canal Grande.
Foi tudo tão real que dei razão
ao filme de Kurosawa, cujo nome
finalmente lembrei: "Viver".
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