São Paulo, sexta-feira, 23 de abril de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Um filme de Kurosawa e a moça da praça São Marcos

Num filme de Akira Kurosawa cujo nome não lembro agora, o personagem principal perde a mulher após muitos anos de casamento. Sonha todas as noites com ela. Inconsolável, como convém aos viúvos decentes, ele pensa em se matar, num ato que não chega a ser de desespero. Japonês igualmente decente não se desespera; o suicídio nada mais é do que um rito de passagem, uma cerimônia religiosa conhecida por todos nós com o nome de haraquiri, que não sei exatamente o que significa, mas deve significar alguma coisa importante e -mais uma vez- decente.
Apesar de tamanha decência, um amigo o dissuade com um argumento definitivo: o viúvo não se resigna à viuvez, não pode viver sem a companhia da mulher que amou e que agora está morta. Praticando o haraquiri, ele não mais sonharia com a mulher, matando-a mais uma vez, negando-lhe a vida que ela continuava a ter, aparecendo em seus sonhos, tal como era em vida, repartindo com ele os mil acidentes de cada dia, alguns verdadeiros, outros criados pela poderosa fertilidade dos sonhos.
O petardo atingiu o alvo, e o viúvo desistiu do suicídio. Deu a volta por cima, continuou vivendo e comendo seus peixes crus todas as manhãs (não sei se japonês come peixe cru todas as manhãs, mas deixa pra lá).
Para ser sincero, quando vi o filme, achei uma besteira que o Nelson Rodrigues classificaria de "atroz". Sonhar com pessoas e coisas que amamos e não mais existem é alimento substancial para fossas colossais. Lembro um personagem famoso na Ipanema dos anos 70, cujo apelido era Hugo Bidê. Foi personagem de história em quadrinhos feita pelo Jaguar e era um dos destaques mais visíveis da banda local que saía no domingo anterior ao Carnaval.
O apelido deveu-se a uma folclórica feijoada que ele serviu aos amigos. Como não tinha panela nem vasilhame suficiente para botar o feijão monumental que preparou, lavou o bidê de seu apartamento, botou a tampa e serviu a feijoada aos amigos e derivados que apareceram em seu apartamento na praça General Osório, se não me engano, era em cima do Jangadeiros, bar que não mais existe, pelo menos com igual fama e freguesia.
Bidê suicidou-se com um tiro na boca, antes dos 40 anos. Todas as noites sonhava com sua amiga Leila Diniz, que morrera num acidente de avião, parece que na Índia. Leila era madrinha da banda, musa do bairro e, ao que consta, não tivera caso nenhum com Bidê, eram apenas bons amigos.
Não suportou acordar todos os dias depois da noite em que Leila sempre lhe aparecia, viva, recriando momentos idos e vencidos e, sobretudo, momentos que não existiram na vida real. A solução foi o tiro da boca, gesto que a moça certamente não aprovaria.
Bem, antes que me acusem de cometer uma crônica excessivamente carioca, com a citação obrigatória do Nelson Rodrigues, a citação eventual do Jaguar e a evocação de dois ícones ipanemenses, mais personagens do Ruy Castro e do Nelsinho Motta que meus, volto ao filme do Kurosawa cujo nome ainda não lembro.
Durante anos me angustiava com sonhos que me traziam pessoas que não mais existem, com situações que não mais enfrento. Lamentava não poder controlá-los. Agora, acho até melhor assim, sonhar com coisas e pessoas não programadas pela saudade ou pela memória. Se cada noite eu me determinasse, hoje sonharei com aquela moça que conheci numa gôndola, em Veneza, hoje sonharei com o pai fabricando um xarope à base de creosoto, codeína e mel para curar minha tosse, desconfio que não teria graça.
Bom mesmo é deitar, invocar santos protetores e ficar disponível para o que der e vier. Evidente que nem sempre aparecem situações e pessoas agradáveis, são matérias de sonho. Quando acabam, além do alívio, fico feliz ao constatar que tudo poderia ter sido pior.
Contudo, nenhum pesadelo, por mais cruel que seja, pode bagunçar o coreto noturno, o circo de fantasmas e duendes que me freqüentam, num carrossel maravilhoso em que tudo volta a ser como era, e até melhor.
Falei acima na moça que conheci numa gôndola em Veneza. Acho que exagerei. Não conheci moça nenhuma em nenhuma gôndola veneziana. Na realidade, a conheci prosaicamente, num shopping center paulista. Nem sequer morreu, sei que continua viva, deve estar terminando um curso qualquer na USP ou na PUC. Pior: nunca andei de gôndola com ela, nem em Veneza nem no lago do Ibirapuera. Mas volta e meia sonho com ela, nos mais estranhos lugares e situações.
Noite dessas, sonhei sim, tomávamos uma bebida verde e viscosa, ouvindo os músicos da praça São Marcos tocando um foxe antigo, talvez "Hindustan", ou coisa parecida. Aquelas enormes bandeiras grenás, com o leão dourado, símbolo da cidade, estavam agitadas pelo vento leve que vinha do Canal Grande.
Foi tudo tão real que dei razão ao filme de Kurosawa, cujo nome finalmente lembrei: "Viver".


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