São Paulo, sábado, 23 de abril de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Para o romancista, "ou é arte ou é inquestionável"

BEATRIZ RESENDE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Assim se inicia uma das resenhas do volume "O Mundo Fora dos Eixos - Crônicas, Resenhas e Ficções", do romancista e jornalista Bernardo Carvalho: "Qual o resenhista que nunca se sentiu ridículo e obsoleto ao falar de literatura numa mídia direcionada para um público cada vez maior e mais indiferenciado, mais interessado na vida dos autores do que nas obras?". Já um fragmento de ficção tem o seguinte começo: "Na falta de notícias, o jornal pediu ao cronista que escrevesse, durante o verão, uma crônica semanal narrando suas perambulações pelo mundo à procura de pessoas desconhecidas". Enquanto isso, a crônica "Os Neoconservadores da Literatura" é uma reflexão sobre a liberdade do romance, alertando para os riscos da "celebração do produto em detrimento da criação", onde o escritor afirma que "o romance é o que se faz dele, e as possibilidades são infinitas".
Fica logo claro que mais uma vez Carvalho, reunindo textos veiculados pela Folha, oferece ao público o apetecível prato da surpresa. Longe do freqüente modelo de "divertissement" característico das reuniões de crônicas contemporâneas, aqui é uma reflexão contínua, fascinante e provocadora sobre a arte contemporânea e a recepção crítica que recebe.
Do "Teatro do Indizível" de Claude Régy ao romance monumental do chinês Cao Xueqin, das instalações apresentadas no Whitney Museum, de Nova York, ao último filme de Amos Gitai, na compreensão do trágico contemporâneo que parte do bunraku, tradicional teatro de bonecos, atravessa a encenação das tragédias "domésticas" de Chikamatsu -o Shakespeare japonês- para chegar ao magnífico "Dolls" de Takeshi Kitano, ou ainda a leitura das obras de W.G. Sebald ou Thomas Bernhard, é do desassossego e espanto que a criação atual deve provocar que o autor está tratando. São também os principais dilemas vividos pelos artistas no processo de criação e em suas próprias vidas passadas "às vezes em espaços distantes de nós e, quase sempre, em tempos sombrios, que a elegante escrita do autor põe na boca de cena".
Como neste momento o que mais me interessa na arte contemporânea é o que a que a ela intencionalmente falta, o que não está evidente ao invés do que mostra, sua anterioridade e seu negativo -ou seja, o processo de criação nas artes cênicas, a ordenação arbitrária proposta pela montagem na narrativa cinematográfica, a recusa dos formatos que cunharam as classificações em gêneros e a intencional transgressão dos limites entre "real" e "ficcional" na literatura -parece-me fascinante que o livro chame atenção para o desejável desconforto provocado pela arte e para o combate que se vem travando entre a clareza e o incompreensível.
Assim, o que poderia parecer uma seleção de drops variados revela-se formulação teórica contundente na qual se destaca o elogio da ficção, "a imaginação como elemento constitutivo da realidade e não um artigo supérfluo", a defesa da literatura como "linguagem que resiste à linguagem usual, da simples comunicação" e do artifício como elemento imprescindível à criação artística: "o artifício é um meio de construção da verdade", na afirmativa de que "toda arte que se preza é uma maneira de transformar em qualidade o que antes podia ser visto ou sentido como defeito".
Como acontece com a coletânea de textos periféricos de Michel Foucault reunidos em "Ditos & Escritos", os trabalhos esparsos publicados por Roland Barthes em revistas ou seus textos-fragmentos, tão mais importantes hoje do que "S/Z" ou mesmo "Sur Racine", os textos forçosamente curtos de Bernardo Carvalho tornam-se, por seu próprio formato, especialmente adequados a promover um debate inadiável que envolva artistas e críticos que não se sintam confortáveis sentados sobre suas certezas.


Beatriz Resende é professora da Escola de Teatro da UniRio e pesquisadora da UFRJ e do CNPq.

O Mundo Fora dos Eixos
    
Autor: Bernardo Carvalho
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 34 (240 págs.)


Texto Anterior: Trecho
Próximo Texto: Mônica Bergamo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.