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CRÍTICA
Para o romancista, "ou é arte ou é inquestionável"
BEATRIZ RESENDE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Assim se inicia uma das resenhas do volume "O Mundo
Fora dos Eixos - Crônicas, Resenhas e Ficções", do romancista e
jornalista Bernardo Carvalho:
"Qual o resenhista que nunca se
sentiu ridículo e obsoleto ao falar
de literatura numa mídia direcionada para um público cada vez
maior e mais indiferenciado, mais
interessado na vida dos autores
do que nas obras?". Já um fragmento de ficção tem o seguinte
começo: "Na falta de notícias, o
jornal pediu ao cronista que escrevesse, durante o verão, uma
crônica semanal narrando suas
perambulações pelo mundo à
procura de pessoas desconhecidas". Enquanto isso, a crônica
"Os Neoconservadores da Literatura" é uma reflexão sobre a liberdade do romance, alertando para
os riscos da "celebração do produto em detrimento da criação",
onde o escritor afirma que "o romance é o que se faz dele, e as possibilidades são infinitas".
Fica logo claro que mais uma
vez Carvalho, reunindo textos veiculados pela Folha, oferece ao público o apetecível prato da surpresa. Longe do freqüente modelo de
"divertissement" característico
das reuniões de crônicas contemporâneas, aqui é uma reflexão
contínua, fascinante e provocadora sobre a arte contemporânea e a
recepção crítica que recebe.
Do "Teatro do Indizível" de
Claude Régy ao romance monumental do chinês Cao Xueqin, das
instalações apresentadas no
Whitney Museum, de Nova York,
ao último filme de Amos Gitai, na
compreensão do trágico contemporâneo que parte do bunraku,
tradicional teatro de bonecos,
atravessa a encenação das tragédias "domésticas" de Chikamatsu
-o Shakespeare japonês- para
chegar ao magnífico "Dolls" de
Takeshi Kitano, ou ainda a leitura
das obras de W.G. Sebald ou Thomas Bernhard, é do desassossego
e espanto que a criação atual deve
provocar que o autor está tratando. São também os principais dilemas vividos pelos artistas no
processo de criação e em suas
próprias vidas passadas "às vezes
em espaços distantes de nós e,
quase sempre, em tempos sombrios, que a elegante escrita do autor põe na boca de cena".
Como neste momento o que
mais me interessa na arte contemporânea é o que a que a ela intencionalmente falta, o que não está
evidente ao invés do que mostra,
sua anterioridade e seu negativo
-ou seja, o processo de criação
nas artes cênicas, a ordenação arbitrária proposta pela montagem
na narrativa cinematográfica, a
recusa dos formatos que cunharam as classificações em gêneros e
a intencional transgressão dos limites entre "real" e "ficcional" na
literatura -parece-me fascinante
que o livro chame atenção para o
desejável desconforto provocado
pela arte e para o combate que se
vem travando entre a clareza e o
incompreensível.
Assim, o que poderia parecer
uma seleção de drops variados revela-se formulação teórica contundente na qual se destaca o elogio da ficção, "a imaginação como
elemento constitutivo da realidade e não um artigo supérfluo", a
defesa da literatura como "linguagem que resiste à linguagem
usual, da simples comunicação" e
do artifício como elemento imprescindível à criação artística: "o
artifício é um meio de construção
da verdade", na afirmativa de que
"toda arte que se preza é uma maneira de transformar em qualidade o que antes podia ser visto ou
sentido como defeito".
Como acontece com a coletânea
de textos periféricos de Michel
Foucault reunidos em "Ditos &
Escritos", os trabalhos esparsos
publicados por Roland Barthes
em revistas ou seus textos-fragmentos, tão mais importantes hoje do que "S/Z" ou mesmo "Sur
Racine", os textos forçosamente
curtos de Bernardo Carvalho tornam-se, por seu próprio formato,
especialmente adequados a promover um debate inadiável que
envolva artistas e críticos que não
se sintam confortáveis sentados
sobre suas certezas.
Beatriz Resende é professora da Escola
de Teatro da UniRio e pesquisadora da
UFRJ e do CNPq.
O Mundo Fora dos Eixos
Autor: Bernardo Carvalho
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 34 (240 págs.)
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