São Paulo, sábado, 23 de abril de 2005

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RODAPÉ

Crítica literária: que bicho é este?

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

A presença tentacular da crítica -hoje, mais para acanhada lula que respeitável polvo- volta e meia suscita o esconjuro do palavrão: míope, injusta e ressentida, para os autores, obscura e dita-regras, para os leitores.
No entanto, acompanhando o barco da literatura de nossos dias, bastante à deriva, mas profícua, as revistas literárias vão de vento em popa. São muitas vozes fugindo da escuridão (ou tentando). No lançamento recente do sétimo número da "Sibila", revista que reúne poetas e professores, por exemplo, a pergunta um tanto altissonante, e nem por isso impertinente, sobre as possibilidades e os impasses da crítica literária no Brasil orientou um debate que extrapola o evento.
Há, antes de tudo, a resistência à crítica em si. Logo abaixo dos contínuos em relevância, segundo Nelson Rodrigues, "homens que não tiveram muita sorte na vida e que, quando já estavam à beira do desespero, encontraram um lugarzinho tranqüilo de guarda de cemitério", segundo Sartre, culminância da cadeia de insultos que Vladimir e Estragon trocam em "Esperando Godot", o crítico nunca foi, na escala da evolução, criatura das mais estimadas.
"Acadêmica, empolada, impenetrável", esse é o retrato falado corriqueiro da crítica brasileira, resumido "a palo seco" no comentário de Álvaro Pereira Júnior em sua coluna sobre Nick Hornby ("Escuta Aqui", Folhateen, de 18/4/ 2005). Mesmo quem não espera um crítico "legal", "cool hunter" que vai do papa ao pop com bossa e sem perder a pose, concorda em parte com a estampa sugerida, sinal de que o diagnóstico não é invenção arbitrária, nem delírio solitário.
Separar o joio do trigo às claras, sem esconder os fundamentos, suspender o juízo apressado ou olímpico, evitar o ridículo de vestir a casaca da autoridade, ler de forma ativa e interessada a produção contemporânea, relacionar novidade e tradição, sem subsumir a primeira na segunda, parece um programa respeitável para a crítica, capaz de agradar tanto aos integrados quanto aos apocalípticos, para falar como os velhos.
Crítica: conversa entre homens inteligentes, já disseram. Mas quem, a esta altura do campeonato, disposto a conversar, ainda escolhe este assunto? Jornalismo literário e ensaísmo universitário têm pressões, objetivos e ritmos diversos. Dividem, contudo, o essencial de uma crise comum: perdem território e interesse, convertendo-se aos poucos em coisa de especialista.
Seu objeto, a literatura, é cada vez mais escorregadio -insegura de sua identidade e descendo ladeira abaixo, dizem alguns; colonizando novos domínios discursivos, dizem outros.
Em "Do que Não Falamos Quando Falamos de Poesia: Algumas Aporias do Jornalismo Literário", artigo curioso publicado em tradução pela revista "Inimigo Rumor" (nš 12, 2002), a crítica norte-americana Marjorie Perloff mostra como a poesia e a literatura de ficção foram progressivamente, ao longo do século passado, postas de escanteio em veículos que, na origem, estavam voltados quase que exclusivamente para sua crítica, caso do "New York Review of Books", do "New York Times Book Review" ou do "Times Literary Supplement".
Tanto lá como cá, o interesse do público educado pulverizou-se por outros gêneros de escrita (os ensaios historiográficos, as biografias, a ciência política), que cresceram em importância, apoderando-se de substanciais fatias do prestígio formador antes atribuído à criação literária.
Na mesma medida que o espaço escasseou, a pretensão a uma explicação sistemática da literatura cresceu em complexidade, enrodilhada no jargão e na vocação multidisciplinar da teoria literária moderna.
O romancista alemão Martin Walser (1927) insiste que os críticos precisam assumir uma deficiência de base de sua linguagem: são escritores e buscam elidir o fato de que sua expressão se origina na sua subjetividade. Colocar-se como dono impessoal da verdade trai a ambição por um papel inútil e nada lisonjeiro: "Um pouco médico municipal, um pouco Moisés, um pouco espírito universal, um pouco tia Lessing, um pouco tio Linné, um pouco Robert Koch, um pouco Mengele, um pouco lebre, um pouco serpente, um pouco intelecto autodidata on the rocks e um pouquinho de nada escritor".
Os males que afligem a crítica literária não são exclusivamente brasileiros, mesmo com agravantes e possibilidades específicos. O crítico doméstico, distribuindo lambidas carinhosas, transigentes e corporativas aos amigos; o crítico venal, que se dobra às modas e ao mercado; o crítico raivoso, em perpétua campanha belicista, intransitivamente contra, monopolizando o saber são espécimes aclimatados em toda parte.
O xis do problema continua na tarefa de enxergar além da confusão contemporânea. Adorno sustentava que a crítica deveria ser exigente e inventiva a ponto de descrever uma arte que, se não existisse, se imporia como uma necessidade e passaria a existir a partir desse esboço profético. Nada mais simples nem mais difícil.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

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