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RODAPÉ
Crítica literária: que bicho é este?
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
A presença tentacular da
crítica -hoje, mais para
acanhada lula que respeitável polvo- volta e meia suscita o esconjuro do palavrão: míope, injusta e
ressentida, para os autores, obscura e dita-regras, para os leitores.
No entanto, acompanhando o
barco da literatura de nossos dias,
bastante à deriva, mas profícua, as
revistas literárias vão de vento em
popa. São muitas vozes fugindo
da escuridão (ou tentando). No
lançamento recente do sétimo
número da "Sibila", revista que
reúne poetas e professores, por
exemplo, a pergunta um tanto altissonante, e nem por isso impertinente, sobre as possibilidades e
os impasses da crítica literária no
Brasil orientou um debate que extrapola o evento.
Há, antes de tudo, a resistência à
crítica em si. Logo abaixo dos
contínuos em relevância, segundo Nelson Rodrigues, "homens
que não tiveram muita sorte na
vida e que, quando já estavam à
beira do desespero, encontraram
um lugarzinho tranqüilo de guarda de cemitério", segundo Sartre,
culminância da cadeia de insultos
que Vladimir e Estragon trocam
em "Esperando Godot", o crítico
nunca foi, na escala da evolução,
criatura das mais estimadas.
"Acadêmica, empolada, impenetrável", esse é o retrato falado
corriqueiro da crítica brasileira,
resumido "a palo seco" no comentário de Álvaro Pereira Júnior
em sua coluna sobre Nick Hornby
("Escuta Aqui", Folhateen, de
18/4/ 2005). Mesmo quem não espera um crítico "legal", "cool
hunter" que vai do papa ao pop
com bossa e sem perder a pose,
concorda em parte com a estampa sugerida, sinal de que o diagnóstico não é invenção arbitrária,
nem delírio solitário.
Separar o joio do trigo às claras,
sem esconder os fundamentos,
suspender o juízo apressado ou
olímpico, evitar o ridículo de vestir a casaca da autoridade, ler de
forma ativa e interessada a produção contemporânea, relacionar
novidade e tradição, sem subsumir a primeira na segunda, parece
um programa respeitável para a
crítica, capaz de agradar tanto aos
integrados quanto aos apocalípticos, para falar como os velhos.
Crítica: conversa entre homens
inteligentes, já disseram. Mas
quem, a esta altura do campeonato, disposto a conversar, ainda escolhe este assunto? Jornalismo literário e ensaísmo universitário
têm pressões, objetivos e ritmos
diversos. Dividem, contudo, o essencial de uma crise comum: perdem território e interesse, convertendo-se aos poucos em coisa de
especialista.
Seu objeto, a literatura, é cada
vez mais escorregadio -insegura
de sua identidade e descendo ladeira abaixo, dizem alguns; colonizando novos domínios discursivos, dizem outros.
Em "Do que Não Falamos
Quando Falamos de Poesia: Algumas Aporias do Jornalismo Literário", artigo curioso publicado
em tradução pela revista "Inimigo
Rumor" (nš 12, 2002), a crítica
norte-americana Marjorie Perloff
mostra como a poesia e a literatura de ficção foram progressivamente, ao longo do século passado, postas de escanteio em veículos que, na origem, estavam voltados quase que exclusivamente para sua crítica, caso do "New York
Review of Books", do "New York
Times Book Review" ou do "Times Literary Supplement".
Tanto lá como cá, o interesse do
público educado pulverizou-se
por outros gêneros de escrita (os
ensaios historiográficos, as biografias, a ciência política), que
cresceram em importância, apoderando-se de substanciais fatias
do prestígio formador antes atribuído à criação literária.
Na mesma medida que o espaço
escasseou, a pretensão a uma explicação sistemática da literatura
cresceu em complexidade, enrodilhada no jargão e na vocação
multidisciplinar da teoria literária
moderna.
O romancista alemão Martin
Walser (1927) insiste que os críticos precisam assumir uma deficiência de base de sua linguagem:
são escritores e buscam elidir o fato de que sua expressão se origina
na sua subjetividade. Colocar-se
como dono impessoal da verdade
trai a ambição por um papel inútil
e nada lisonjeiro: "Um pouco médico municipal, um pouco Moisés, um pouco espírito universal,
um pouco tia Lessing, um pouco
tio Linné, um pouco Robert Koch,
um pouco Mengele, um pouco lebre, um pouco serpente, um pouco intelecto autodidata on the
rocks e um pouquinho de nada
escritor".
Os males que afligem a crítica literária não são exclusivamente
brasileiros, mesmo com agravantes e possibilidades específicos. O
crítico doméstico, distribuindo
lambidas carinhosas, transigentes
e corporativas aos amigos; o crítico venal, que se dobra às modas e
ao mercado; o crítico raivoso, em
perpétua campanha belicista, intransitivamente contra, monopolizando o saber são espécimes
aclimatados em toda parte.
O xis do problema continua na
tarefa de enxergar além da confusão contemporânea. Adorno sustentava que a crítica deveria ser
exigente e inventiva a ponto de
descrever uma arte que, se não
existisse, se imporia como uma
necessidade e passaria a existir a
partir desse esboço profético. Nada mais simples nem mais difícil.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
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