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FERREIRA GULLAR
Gato fujão
Camilo , gato siamês de Darlene, vive com ela num apartamento aqui perto de onde moro. Darlene tem uma filha, que
casou e mudou-se para a Tijuca.
Camilo sentiu a falta dela, que ficava boa parte do dia em casa, fazendo-lhe companhia, já que sua
dona trabalha na televisão e passa muito tempo fora. Por isso, Camilo ficava o dia todo de orelha
em pé, atento ao menor ruído, na
expectativa de que a porta se
abrisse e Darlene entrasse de braços estendidos para pegá-lo no colo. Aí, então, sentia-se feliz e esquecia as horas de solidão que suportara.
Mas eis que, naquela quarta-feira, a faxineira, ao abrir a porta
da cozinha, não percebeu que Camilo escapara para o corredor.
Como havia terminado a faxina e
já ia embora, trancou a porta, entrou no elevador e se foi, sem perceber que Camilo ficara do lado
de fora, mais precisamente, no
lance de escada que dá para o terceiro andar.
"E agora," -pensou Camilo-
"como vou entrar em casa?" Naquele instante, ouviu vozes, rumor de gente que descia pela escada, e escafedeu-se: foi parar no
andar térreo, no corredor que leva à entrada de serviço. Assustado, escondeu-se atrás de uns sacos
de lixo que havia ali. Mas, logo
depois, veio o faxineiro e pegou
um dos sacos e o levou. Camilo,
vendo a porta aberta, correu e
saiu para a rua.
Esqueci de dizer que era Carnaval. Mal chegou à rua, surgiu um
bloco barulhento, com bumbo e
corneta, gente cantando e pulando. Tratou de afastar-se dali o
mais depressa que pôde, dobrou a
esquina, atravessou a rua e, como
outro bloco se aproximava, subiu
por um andaime que havia junto
à marquise de um prédio. A barulheira dos carnavalescos aumentava, obrigando-o a passar para a
marquise e meter-se por um buraco que encontrou.
Ficou ali um tempo, esperando
o bloco afastar-se e o silêncio se
restabelecer. "Quem inventou o
Carnaval não pensou nos gatos",
especulou Camilo lá com seus bigodes, mas logo esqueceu o Carnaval, porque o seu problema era como voltar para casa. Àquela altura, não tinha noção de onde se
encontrava. E, vendo vir outro
bloco acompanhado de carro de
som com potentes alto-falantes,
tratou de fugir dali, penetrando
mais profundamente no buraco
onde se metera, e descobriu que lá
adiante havia certa claridade.
Cauteloso, seguiu em frente e deparou com um espaço aberto que
era, na verdade, um telhado muito grande, para onde davam as
janelas de quatro edifícios. Continuava apreensivo, mas ali, pelo
menos, havia silêncio e sossego.
Relaxou e, depois de algum tempo, adormeceu.
Ao acordar, já anoitecera. Pensou em explorar a área, mas
achou melhor voltar por onde viera e tentar encontrar o caminho
de casa. Foi o que fez, mas, ao chegar ao buraco por onde entrara,
encontrou-o fechado. "E agora?"
Teve vontade de miar alto para
ver se a Darlene o ouvia e vinha
socorrê-lo, mas controlou-se, temendo atrair algum inimigo.
Voltou para o telhado de onde
viera, descobriu um vão de telha
aberto e lá se escondeu. Ao acordar de madrugada, com fome e
sede, não agüentou mais e começou a miar alto, a pedir socorro.
Despertei ouvindo aquele miado lancinante e tive a ilusória alegria de que meu gatinho, falecido
havia poucos meses, ressuscitara!
Mas logo a ilusão se desfez, não
podia ser ele, era outro gato. Fui
até a área de serviço, espiei pela
tela de metal que a protege e o vi:
era um gato siamês, parecido com
meu Gatinho, que estava ali,
miando desesperado. Pensei em ir
a seu socorro, mas logo me dei
conta de que não havia por onde
passar. Voltei para a cama comovido, imaginando um modo de
socorrê-lo ou, pelo menos, de lhe
dar água e comida.
Os dias se passaram e, todas as
noites, escutava seus gemidos,
sem nada poder fazer. Finalmente, me lembrei de que havia comunicação entre a marquise e o
telhado onde ele estava. Esperei o
dia amanhecer, pus uma escada
pela janela e desci até a marquise.
Não havia passagem alguma.
No dia seguinte, vi dois homens
buscando alguma coisa naquele
telhado e pensei que estivessem
atrás do gato. Se estavam, não o
encontraram porque, ainda naquela noite, voltei a escutar-lhe os
miados doídos.
Mas veja como é a vida. Um dos
homens que procuravam naquele
dia disse a alguém que havia ali
um gato perdido.
-Deve ser o gato de dona Darlene!, falou alguém.
E foi contar a ela que, sem hesitar, faltou ao serviço na televisão
e veio à procura do Camilo. Os
dois homens, que tinham subido
ao telhado para procurá-lo, não
conseguiram achá-lo porque ele
se enfiara naquele buraco das telhas que era seu esconderijo e ali
ficara, quietinho e assustado.
Mas, agora, quando ouviu a voz
de Darlene, mudou de atitude;
primeiro, deixou que ela o chamasse de novo; então, pôs a cabecinha fora do buraco para se certificar. Era ela mesmo que estava
ali!
Soltou um miado diferente
-como nem Darlene nem ninguém jamais ouvira- e correu
para os braços dela que, com lágrimas nos olhos, o acarinhou e
beijou.
Em tempo: na crônica "Morte
do Opinião", por falta de espaço, deixei de dizer que João das
Neves, ao assumir o teatro, salvou-o da morte e o manteve ativo
e atuante durante 11 anos.
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