São Paulo, sábado, 23 de abril de 2011

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CRÍTICA ROMANCE

Nova tradução guarda estilo malicioso de Vladimir Nabokov

Em "Lolita" (1955), autor russo faz uso da sensualidade para retratar a crueldade humana nos EUA dos anos 50

MARTIM VASQUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vamos despi-la dos clichês, querida Lolita. Todos sabem das suas histórias: a do padrasto que lhe estuprava todas as noites, a de sua morte cruel enquanto estava prestes a dar à luz. O que os outros não sabem é sobre a sua verdadeira natureza.
Por isso ainda sentem fascínio sobre a sua história e personalidade. Talvez o seu criador, Vladimir Nabokov (1899-1977), não tenha calculado seu alcance duradouro. Mas, sem dúvida, pretendia que o efeito fosse equivalente ao de Humbert Humbert quando a viu no jardim da casa de sua mãe.
Humbert ficaria ofendido se o chamassem de "pedófilo". "Não sou nada disso", exclamaria perante o tribunal do politicamente correto, "sofro de ninfolepsia". Uma palavra bonita não esconde o lado perverso.
Esta era a especialidade de Nabokov: um estilo malicioso, sensual, agasalhando a crueldade humana, mantido por Sérgio Flaksman na nova versão que nada deve à tradução pioneira de Jorio Dauster.
Neste mundo onde os pervertidos acreditam ser poetas, o esteticismo é um pecado mortal de enorme prazer. Para Martin Amis, autor do posfácio desta reedição, é a estética bem trabalhada e detalhista que permite reencontrar detalhes que pareciam não estar lá, quando você surgiu pela primeira vez em 1955, em uma América com alguma inocência.
Anos depois, Amis mostraria que Nabokov já sabia que esta não existia há tempos. Em "Koba, o Terrível", livro sobre os crimes do stalinismo, o escritor mostra que nada há de lírico em sua história. Trata-se, na verdade, de um estudo sobre a tirania.

PEQUENO DITADOR
Era um assunto que Nabokov entendia como poucos. Afinal, fugiu da Revolução Russa porque sua família apoiava o czar. Não por acaso Humbert age como um pequeno ditador em relação às suas vítimas: compra presentes, usa barbitúricos para sodomizar suas consciências, recita poemas de Edgar Allan Poe como se fossem cantigas de ninar.
Mas Lolita também se mostrou uma perfeita tirana. Enganou Humbert como se fosse um palhaço e fez o mesmo com Clare Quilty, o rival de seu padrasto, hoje reconhecido pelo público através das feições de Peter Sellers. Neste conto amargo, Nabokov mostra a dupla escravidão de quem vive em função da pior das tiranias: a do desejo.
Você ainda não perdeu o seu encanto simplesmente porque nos entregamos ao Stalin das nossas paixões. O que pedimos da sua história é que nos ensine, como diria John Donne, a não deixar que nossos afetos nos matem e nem morram. Sua morte foi apenas no papel. Sua verdadeira natureza é a imortalidade da nossa tirania interior -e isto é a única coisa, querida Lolita, que podemos compartilhar contigo.


MARTIM VASQUES DA CUNHA é editor da revista "Dicta&Contradicta" e doutorando pela USP

LOLITA

AUTOR Vladimir Nabokov
EDITORA Alfaguara Brasil
TRADUÇÃO Sergio Flaskman
QUANTO R$ 49,90 (392 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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