São Paulo, terça-feira, 23 de maio de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Morte em Veneza


Nunca tinha ido a Veneza, e agora tenho vergonha de dizer que estou impregnado dela

DESCOBRIR VENEZA aos 45 anos é como ler "Em Busca do Tempo Perdido" pela primeira vez e achar que encontrou um novo autor. Nunca tinha ido a Veneza. E agora tenho vergonha de dizer que estou impregnado dela, o que soa ainda mais ridículo numa cidade sitiada pelo crime organizado. É fácil ser contra Veneza, deplorar a Disneylândia para adultos e a vulgarização dos turistas, como se você não fosse um deles. Difícil é tirá-la da cabeça.
Num pequeno livro lançado há dois meses pela Cosacnaify ("Marca-d'água"), o poeta russo Joseph Brodsky fala da materialização do tempo nessa cidade formada por um elemento sem forma: "Sempre concordei com a idéia de que Deus é tempo, ou pelo menos de que Seu espírito é. (...) Sempre pensei que se o Espírito de Deus se movia sobre a face da água, a água tinha de refleti-lo. (...) Simplesmente penso que a água é a imagem do tempo".
Vem daí provavelmente a insistência com que Veneza -essa cidade onde a arquitetura dá uma forma ao informe, respondendo à água com "a única propriedade que o tempo não possui: a beleza"- remete os escritores à morte. Porque, em princípio, "nós partimos e a beleza fica". De Henry James a Ian McEwan, passando por Thomas Mann, todos se serviram de Veneza como emblema da morte e do desejo de beleza que a ela tenta se contrapor.
Em "As Asas da Pomba", Henry James representa a vocação dessa cidade por meio dos últimos dias de uma jovem herdeira desenganada que, do interior de um palácio veneziano, tenta contrariar o destino, empregando sua fortuna para arquitetar uma vida levada às últimas conseqüências, no pouco tempo que lhe resta.
O paradoxo, no caso de uma cidade construída por gente que fugia das invasões bárbaras e que se viu encurralada entre uma laguna e uma centena de ilhas e bancos de areia, é que, tendo desafiado os elementos, dando forma ao que não tem forma, moldando-se na água e, portanto, no tempo, ela teria que estar condenada ao temporário.
Para o alemão W.G. Sebald, autor de "Os Anéis de Saturno", a propagação da espécie humana sobre a Terra passa pela combustão incessante de todas as substâncias combustíveis. A civilização humana nasce com o fogo e está fadada a desaparecer nele, pelos efeitos dessa queima incessante da qual, trágica e paradoxalmente, também depende a sua sobrevivência. A civilização humana é a sua própria destruição.
À primeira vista, Veneza contradiz essa fatalidade. E o turista se sente redimido. Afinal, a cidade nasce da água da qual nós também somos feitos, além de ser a prova material do sucesso do encontro entre o Ocidente e o Oriente. O sonho de uma civilização possível parece realizado em 13 quilômetros de circunferência. Mas basta subir ao alto do campanário da praça São Marcos ou da ilha de São Jorge e avistar ao longe o cenário industrial recalcado no continente, com chaminés e gasômetros prateados, reluzindo no fundo da laguna, para cair em si e voltar à realidade. E perceber que Veneza não é uma civilização à parte. A beleza não é suficiente para reverter a maldição. A cidade está afundando. Por causa da alta das marés mas também pelos dejetos industriais que entopem a laguna e os canais.
Brodsky diz que Veneza é a cidade do olho: "Porque somos finitos, um afastamento deste lugar sempre parece derradeiro; deixá-lo para trás é deixá-lo para sempre. (...) Não é o corpo que deixa a cidade, mas a cidade que abandona a pupila. Da mesma maneira, o desaparecimento do ser amado (...) causa dor independentemente de quem (...) esteja na verdade partindo. (...) Esta cidade é o ser amado do olho. Depois dela, tudo é desapontamento".
Há duas semanas, enquanto eu caminhava por uma extremidade pouco turística de Veneza, um enfermeiro desceu de uma lancha-ambulância com um velho numa cadeira de rodas. Quando passaram por mim às pressas, com a cadeira de rodas sacudindo pelo pavimento irregular do cais, na direção de um hospital, o doente me encarou com os olhos aterrorizados de quem vê a morte. Era como se tentasse tomar o meu lugar. Eram os olhos enciumados de quem sabia que eu ia continuar a ver essa cidade depois de ele partir.

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