|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BERNARDO CARVALHO
Morte em Veneza
Nunca tinha ido a
Veneza, e agora tenho vergonha de dizer que estou impregnado dela
|
DESCOBRIR VENEZA aos 45
anos é como ler "Em Busca
do Tempo Perdido" pela primeira vez e achar que encontrou
um novo autor. Nunca tinha ido a
Veneza. E agora tenho vergonha de
dizer que estou impregnado dela, o
que soa ainda mais ridículo numa
cidade sitiada pelo crime organizado. É fácil ser contra Veneza, deplorar a Disneylândia para adultos e a
vulgarização dos turistas, como se
você não fosse um deles. Difícil é tirá-la da cabeça.
Num pequeno livro lançado há
dois meses pela Cosacnaify ("Marca-d'água"), o poeta russo Joseph
Brodsky fala da materialização do
tempo nessa cidade formada por
um elemento sem forma: "Sempre
concordei com a idéia de que Deus
é tempo, ou pelo menos de que Seu
espírito é. (...) Sempre pensei que se
o Espírito de Deus se movia sobre a
face da água, a água tinha de refleti-lo. (...) Simplesmente penso que a
água é a imagem do tempo".
Vem daí provavelmente a insistência com que Veneza -essa cidade onde a arquitetura dá uma forma
ao informe, respondendo à água
com "a única propriedade que o
tempo não possui: a beleza"- remete os escritores à morte. Porque,
em princípio, "nós partimos e a beleza fica". De Henry James a Ian
McEwan, passando por Thomas
Mann, todos se serviram de Veneza
como emblema da morte e do desejo de beleza que a ela tenta se contrapor.
Em "As Asas da Pomba", Henry
James representa a vocação dessa
cidade por meio dos últimos dias de
uma jovem herdeira desenganada
que, do interior de um palácio veneziano, tenta contrariar o destino,
empregando sua fortuna para arquitetar uma vida levada às últimas
conseqüências, no pouco tempo
que lhe resta.
O paradoxo, no caso de uma cidade construída por gente que fugia
das invasões bárbaras e que se viu
encurralada entre uma laguna e
uma centena de ilhas e bancos de
areia, é que, tendo desafiado os elementos, dando forma ao que não
tem forma, moldando-se na água e,
portanto, no tempo, ela teria que
estar condenada ao temporário.
Para o alemão W.G. Sebald, autor
de "Os Anéis de Saturno", a propagação da espécie humana sobre a
Terra passa pela combustão incessante de todas as substâncias combustíveis. A civilização humana
nasce com o fogo e está fadada a desaparecer nele, pelos efeitos dessa
queima incessante da qual, trágica e
paradoxalmente, também depende
a sua sobrevivência. A civilização
humana é a sua própria destruição.
À primeira vista, Veneza contradiz essa fatalidade. E o turista se
sente redimido. Afinal, a cidade
nasce da água da qual nós também
somos feitos, além de ser a prova
material do sucesso do encontro
entre o Ocidente e o Oriente. O sonho de uma civilização possível parece realizado em 13 quilômetros
de circunferência. Mas basta subir
ao alto do campanário da praça São
Marcos ou da ilha de São Jorge e
avistar ao longe o cenário industrial
recalcado no continente, com chaminés e gasômetros prateados, reluzindo no fundo da laguna, para
cair em si e voltar à realidade. E
perceber que Veneza não é uma civilização à parte. A beleza não é suficiente para reverter a maldição. A
cidade está afundando. Por causa
da alta das marés mas também pelos dejetos industriais que entopem
a laguna e os canais.
Brodsky diz que Veneza é a cidade do olho: "Porque somos finitos,
um afastamento deste lugar sempre parece derradeiro; deixá-lo para
trás é deixá-lo para sempre. (...) Não
é o corpo que deixa a cidade, mas a
cidade que abandona a pupila. Da
mesma maneira, o desaparecimento do ser amado (...) causa dor independentemente de quem (...) esteja
na verdade partindo. (...) Esta cidade é o ser amado do olho. Depois
dela, tudo é desapontamento".
Há duas semanas, enquanto eu
caminhava por uma extremidade
pouco turística de Veneza, um enfermeiro desceu de uma lancha-ambulância com um velho numa
cadeira de rodas. Quando passaram
por mim às pressas, com a cadeira
de rodas sacudindo pelo pavimento
irregular do cais, na direção de um
hospital, o doente me encarou com
os olhos aterrorizados de quem vê a
morte. Era como se tentasse tomar
o meu lugar. Eram os olhos enciumados de quem sabia que eu ia continuar a ver essa cidade depois de
ele partir.
Texto Anterior: Crítica: TCM exibe pérola noir de Billy Wilder Próximo Texto: Resumo das novelas Índice
|