São Paulo, sexta-feira, 23 de maio de 2008

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CARLOS HEITOR CONY

De índios e de mim pecador


Se começo a pensar que índio é aborígine, acabo justificando qualquer massacre

ENTRE AS minhas cívicas e problemáticas virtudes, não está o amor pelos índios. Tampouco o desamor. Embora os respeite e tudo deseje de bom para que se- jam felizes, não me lembro de ter perdido uma noite de sono por causa deles.
Conheço, em linhas gerais, e muito por cima, seus problemas históricos e reconheço seus direitos sobre o território que era exclusivamente deles. Aprecio e dou força às campanhas feitas ou a fazer a favor de suas causas. Nada tenho contra. E tudo a favor.
Já foram cometidas muitas barbaridades contra os índios, no passado e agora. Até mesmo uma espécie de genocídio. Sei que a igreja, sobretudo os missionários da região amazônica, chegaram a engrossar com o papa quando João Paulo 2º visitou a terra deles, em sua primeira vinda ao Brasil, em 1980.
Os promotores do encontro queriam que os indígenas organizassem um espetáculo apenas folclórico, de danças e outras amenidades, mas os bispos locais exigiram que o papa tomasse conhecimento dos problemas de diversas comunidades. Dei-lhes, a todos, índios, bispos, missionários e papa, minha calorosa e não solicitada bênção.
Mas acho que há exagero na parte dita sociológica do problema. Está certo que lutemos para preservar as tribos existentes, garantindo antes de mais nada a posse de suas terras, onde possam desenvolver sua cultura e viverem como bem entendem. Se não me engano, essa é importante exigência dos direitos humanos.
Mas alguns sociólogos e ambientalistas, na ânsia de defender os índios, enfocam a questão em termos xenófobos e cientificamente anti-históricos. Leio num documento: "Os índios no Brasil constituíam uma população de 5 milhões de aborígines por ocasião da invasão portuguesa, em 1500".
Em primeiro lugar, abomino a palavra aborígine. Se começo a pensar que índio é aborígine, acabo justificando qualquer massacre. Depois vem a questão da invasão portuguesa. Confesso que, na primeira leitura, não entendi direito.
Bem ou mal, a história é escrita pelos vencedores. Tivemos a invasão holandesa, aí pelo Norte, outra dos franceses, aqui pelo Sul. Foram repelidos. Mas, em 1500, tivemos o Descobrimento ou o Achamento -único fato, por sinal, que o Brasil produziu até agora para a história universal.
Descoberto ou achado, de qualquer forma, é dose para leão examinar a questão por outro ângulo. Imaginar que o bravo almirante português, além de não saber por onde estava navegando, além da mancada de ter perdido o rumo das Índias, cometeu o crime de "invadir" terras alheias.
Nada tenho contra ou a favor de Cabral, não sou entusiasta da colonização portuguesa nem de colonização alguma. Mas aceito humildemente os fatos. Se não houvesse o Descobrimento, o Achamento ou a Invasão, eu seria hoje um inocente tamoio, de troços de fora, tomando porre de cauim, dançando e comendo peixe no quarup, adorando Tupã e temendo o Manitô -que parece ser o deus do sono ou da alucinação.
Talvez nem pudesse ter o luxo e a arrogância de não adorar Tupã nenhum, não existem índios ateus, eles nunca leram Voltaire, Renan e Marx. Em compensação, eu não teria resfriados, não correria o risco de morrer de câncer, ser atropelado por um motoqueiro alucinado ou vítima de bala perdida.
Não sofreria angústias existenciais (também não teria lido Sartre nem Hegel), não pagaria Imposto de Renda nem seria obrigado a votar. Enfim, tornar-me-ia um cara absolutamente puro, forte e ecologicamente correto.
Quis a história, via Pedro Álvares Cabral, que eu resultasse no monstro que sou, pasto de bacilos, minado de bactérias nocivas, corrompido por dentro e por fora. Não teria ouvido Vivaldi e Benedetto Marcello, autores venezianos do meu agrado, nem apreciado aquela pequena fogueira pintada por Goya, que está num canto quase escondida, na parede mais humilde do museu do Prado.
O caso pessoal não conta. Conta o meu incondicional apoio à causa dos índios, desde que eu continue aqui na Lagoa, e eles, em suas terras, puros e belos, donos absolutos do chão que Tupã lhes deu e que homem nenhum, em nome de Deus ou da civilização, pode tirar.


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