São Paulo, sexta, 23 de maio de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Das vascas do meu avô

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

O avô morreu numa tarde de maio, depois de oito dias e oito noites de "crudelíssima agonia" -frase que foi dita à beira de seu túmulo por um orador que ninguém sabia quem era. Lá estava o camarada, em cima de uma campa vizinha, desgrenhando os cabelos. Suspeitamos que homenageava defunto errado, pois falou muito no Senado, lugar onde o avô nunca tinha pisado.
Além de meu avô, era pai, avô, bisavô e tataravô de muita gente, razão bastante para tornar a sua agonia realmente cruel. A casa ficou cheia durante oito dias e oito noites.
A princípio, todo mundo rodeava o leito, mas com a dilatação da agonia o pessoal foi se espalhando. Apareceram sofás-camas, um tabuleiro de xadrez e três aparelhos de televisão. Pela altura da terceira noite, num dos quartos foi flagrado um buraco a um cruzeiro o ponto. Não chegou a haver escândalo porque aqueles que não estavam na turma do buraco estavam na do pôquer.
A primeira geração logo foi largando o moribundo. Eram velhos que já tinham seus próprios problemas, próstatas arrombadas, encaravam a morte como um fato da vida.
A segunda geração, na fase responsável, cercava o leito, inarredável. Todos ali se fiscalizavam para saber quem seria o ingrato capaz de abandonar o patriarca na hora extrema. A terceira geração encarregava-se da "logística" -segundo a classificação de um tio-avô, general reformado, gostava de dar nomes complicados às coisas.
Dita logística incluía cafezinhos e sanduíches, que se expandiram até refeições normais -e de tal forma funcionou que rosnou-se a grande notícia: no sábado haveria um suntuoso vatapá, para aproveitar os escalões da família compulsoriamente reunidos. Meu pai faria as batidas de limão e maracujá.
O sacrário da festa era mesmo o quarto do avô. Desmontaram os móveis e botaram a cama do velho no centro. Ficou apenas uma velha cômoda que não passava pelas portas, de tão velha inchara e ninguém conseguiu entender como ela pudera entrar ali.
Em cima da cômoda, providenciaram um pequeno altar. Dos guardados de uma tia que vivera na Europa saiu uma litogravura colorida, uma pomba simbolizando o Espírito Santo, Jesus Cristo, Nossa Senhora das Dores com um punhal atravessado no coração. Em volta da pomba, em caracteres góticos, pias palavras francesas: "Dieu - Coeur - Votre Serve".
Cada setor da família trouxe um padre para os últimos momentos, que se repetiam de quatro em quatro horas com pontualidade exasperante e eram precedidos por alguém que gritava pela casa: "É agora! Corram que é agora!"
Todos corriam, levantavam-se sonolentos dos sofás, escondiam-se as fichas do buraco ou do pôquer -e nunca era agora. O velho resistia.
"Dessa têmpera não se faz mais!"- era a voz dos mais velhos, que conseguiam assim ofender os mais novos, chamando-os de bananas.
Além dos padres, havia os médicos, trazidos pelos setores mais responsáveis. Esta política arrastara-se por anos, até que os médicos existentes na família (uns cinco) resolveram despachar os estranhos e ficar com a custódia do doente -e aí foi que a coisa engrossou, e o velho entrou nas vascas.
Padre, a família não tinha nenhum. O único que se atrevera era eu, mas ali estava, rodeado de mulher e filhas, pecador e incréu, não servia para nada, por isso me olhavam e talvez me odiassem. Uma contraparente do marido de uma das sobrinhas de não sei quem impôs a presença de uma médium para rezar preces -e aí houve quase bofetão. Invocou-se o ecumenismo, a médium veio, deu passes, disse que ninguém morria -o que não chegava a ser ironia, o único que estava a fim recusava-se a morrer mesmo.
Depois da médium, trouxeram um bispo que defumou a casa, defumando em especial o velho. Depois houve missa, muitos comungaram pungidamente, e quem mais se pungiu foi um tio que havia bebido demais e foi tomar comunhão pensando que havia uma distribuição genérica de alka-seltzer.
Até que, de repente, houve um rebuliço no quarto. Depois de oito dias e oito noites de boca aberta e olhos fechados, o velho resolvera fechar a boca e abrir os olhos. Os médicos da família entreolharam-se, sem saber a que atribuir a súbita mudança de status quo.
As duas facções que ambicionavam o poder empurraram os respectivos representantes para a borda do leito. Eram gêmeos, pela lei tribal ninguém sabia qual dos dois substituiria o patriarca nos negócios e conselhos familiares. Um nome dito pelo moribundo preservaria a dinastia.
Havia o temor de que o velho pronunciasse um nome de mulher -Guiomar- seu pecado de mocidade, poderia gerar confusão, até mesmo uma bordoada geral. Guiomar era a responsável pelo escalão bastardo da família.
Pensando nisso, resolveram impedir a mensagem do velho. Aproximaram dos lábios do avô a cruz de peroba que recebera o último suspiro dos varões ilustres da família. Quase a empurraram pela goela abaixo do moribundo. O velho sabia que aquela cruz, negra e sinistra, era a senha fatal dos que deixavam a vida. Tentou reagir. Levantou a mão, afastou a cruz de sua boca e murmurou: "Que pernas! Que pernas!". E morreu.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã