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Das vascas do meu avô
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
O avô morreu numa tarde de
maio, depois de oito dias e oito
noites de "crudelíssima agonia" -frase que foi dita à beira de seu túmulo por um orador que ninguém sabia quem
era. Lá estava o camarada, em
cima de uma campa vizinha,
desgrenhando os cabelos. Suspeitamos que homenageava
defunto errado, pois falou
muito no Senado, lugar onde o
avô nunca tinha pisado.
Além de meu avô, era pai,
avô, bisavô e tataravô de muita gente, razão bastante para
tornar a sua agonia realmente
cruel. A casa ficou cheia durante oito dias e oito noites.
A princípio, todo mundo rodeava o leito, mas com a dilatação da agonia o pessoal foi
se espalhando. Apareceram sofás-camas, um tabuleiro de xadrez e três aparelhos de televisão. Pela altura da terceira
noite, num dos quartos foi flagrado um buraco a um cruzeiro o ponto. Não chegou a haver
escândalo porque aqueles que
não estavam na turma do buraco estavam na do pôquer.
A primeira geração logo foi
largando o moribundo. Eram
velhos que já tinham seus próprios problemas, próstatas arrombadas, encaravam a morte
como um fato da vida.
A segunda geração, na fase
responsável, cercava o leito,
inarredável. Todos ali se fiscalizavam para saber quem seria
o ingrato capaz de abandonar
o patriarca na hora extrema. A
terceira geração encarregava-se da "logística" -segundo
a classificação de um tio-avô,
general reformado, gostava de
dar nomes complicados às coisas.
Dita logística incluía cafezinhos e sanduíches, que se expandiram até refeições normais -e de tal forma funcionou que rosnou-se a grande
notícia: no sábado haveria um
suntuoso vatapá, para aproveitar os escalões da família
compulsoriamente reunidos.
Meu pai faria as batidas de limão e maracujá.
O sacrário da festa era mesmo o quarto do avô. Desmontaram os móveis e botaram a
cama do velho no centro. Ficou apenas uma velha cômoda
que não passava pelas portas,
de tão velha inchara e ninguém conseguiu entender como ela pudera entrar ali.
Em cima da cômoda, providenciaram um pequeno altar.
Dos guardados de uma tia que
vivera na Europa saiu uma litogravura colorida, uma pomba simbolizando o Espírito
Santo, Jesus Cristo, Nossa Senhora das Dores com um punhal atravessado no coração.
Em volta da pomba, em caracteres góticos, pias palavras
francesas: "Dieu - Coeur - Votre Serve".
Cada setor da família trouxe
um padre para os últimos momentos, que se repetiam de
quatro em quatro horas com
pontualidade exasperante e
eram precedidos por alguém
que gritava pela casa: "É agora! Corram que é agora!"
Todos corriam, levantavam-se sonolentos dos sofás,
escondiam-se as fichas do buraco ou do pôquer -e nunca
era agora. O velho resistia.
"Dessa têmpera não se faz
mais!"- era a voz dos mais
velhos, que conseguiam assim
ofender os mais novos, chamando-os de bananas.
Além dos padres, havia os
médicos, trazidos pelos setores
mais responsáveis. Esta política arrastara-se por anos, até
que os médicos existentes na
família (uns cinco) resolveram
despachar os estranhos e ficar
com a custódia do doente -e
aí foi que a coisa engrossou, e o
velho entrou nas vascas.
Padre, a família não tinha
nenhum. O único que se atrevera era eu, mas ali estava, rodeado de mulher e filhas, pecador e incréu, não servia para
nada, por isso me olhavam e
talvez me odiassem. Uma contraparente do marido de uma
das sobrinhas de não sei quem
impôs a presença de uma médium para rezar preces -e aí
houve quase bofetão. Invocou-se o ecumenismo, a médium veio, deu passes, disse
que ninguém morria -o que
não chegava a ser ironia, o
único que estava a fim recusava-se a morrer mesmo.
Depois da médium, trouxeram um bispo que defumou a
casa, defumando em especial o
velho. Depois houve missa,
muitos comungaram pungidamente, e quem mais se pungiu
foi um tio que havia bebido
demais e foi tomar comunhão
pensando que havia uma distribuição genérica de alka-seltzer.
Até que, de repente, houve
um rebuliço no quarto. Depois
de oito dias e oito noites de boca aberta e olhos fechados, o
velho resolvera fechar a boca e
abrir os olhos. Os médicos da
família entreolharam-se, sem
saber a que atribuir a súbita
mudança de status quo.
As duas facções que ambicionavam o poder empurraram os
respectivos representantes para a borda do leito. Eram gêmeos, pela lei tribal ninguém
sabia qual dos dois substituiria o patriarca nos negócios e
conselhos familiares. Um nome dito pelo moribundo preservaria a dinastia.
Havia o temor de que o velho
pronunciasse um nome de mulher -Guiomar- seu pecado
de mocidade, poderia gerar
confusão, até mesmo uma bordoada geral. Guiomar era a
responsável pelo escalão bastardo da família.
Pensando nisso, resolveram
impedir a mensagem do velho.
Aproximaram dos lábios do
avô a cruz de peroba que recebera o último suspiro dos varões ilustres da família. Quase
a empurraram pela goela
abaixo do moribundo. O velho
sabia que aquela cruz, negra e
sinistra, era a senha fatal dos
que deixavam a vida. Tentou
reagir. Levantou a mão, afastou a cruz de sua boca e murmurou: "Que pernas! Que pernas!". E morreu.
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