São Paulo, segunda-feira, 23 de junho de 2008

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NELSON ASCHER

O maior poeta vivo


Pensador engajado, o alemão Hans Magnus Enzensberger produz uma poesia ensaística

A PARTIR de meados do século passado boa parte da poesia mundial enveredou por algum tipo de hermetismo. Refiro-me não aos poetas que chegaram maduros à Segunda Guerra, pois muitos entre esses reagiram à crise buscando clareza expressiva em seus derradeiros trabalhos, mas, sim, aos que estrearam depois. Sobretudo em inglês e francês, exploraram-se temas e aspectos cada vez mais restritos e nuançados deles, transformando-se o poema em objeto tão autônomo quanto possível, desligado de seu entorno imediato e mesmo das expectativas normais do público.
Não estou censurando tal tendência, uma vez que seus representantes máximos se mostraram aptos, paradoxalmente, a dar voz aos impasses da época lançando mão de equações verbais que, enigmáticas, beiravam não raro o ininteligível.
Ninguém ilustra este sucesso, mediante o qual o óbvio aflora do âmago do obscuro e a incompreensão inicial do leitor se torna a isca que o fisga e dirige rumo a sentidos à primeira vista imperceptíveis, melhor do que Paul Celan (1920-70). O poeta de expressão alemã, nascido na Bucovina (pertencente então à Romênia) e sobrevivente do Holocausto, conseguiu, usando recursos indiretos e inesperados, dar ao Apocalipse uma forma cuja adequação nenhum outro explicitamente dedicado à tarefa foi capaz de superar.
É um fato, porém, que, por trás do grosso do hermetismo que caracterizou o último meio século, não havia nada digno de nota a se explorar. Assim, a linhagem mais honesta e eficaz da poesia tem sido aquela que optou por mostrar suas cartas, permitindo ao leitor avaliar logo de início se o esforço que estaria prestes a investir na leitura terá chances de ser recompensado.
O principal expoente dessa orientação, que é também o maior poeta vivo, escreve em alemão e chama-se Hans Magnus Enzensberger. Nascido em 1929, ele assistiu, adolescente, à guerra desde o olho do ciclone. Coube à sua geração reconstruir a cultura e até a língua de seu país com (e/ou contra) o que restara na terra arrasada à qual o nazismo as reduzira. Começando a publicar versos inspirados por Brecht e ensaios influenciados por Adorno e Benjamin nos anos 50, sua carreira foi de uma variedade ímpar e ninguém como ele exemplificou tão bem o papel do intelectual e as aventuras da inteligência durante a metade final do século 20.
Enzensberger, que nos anos 60 já era reconhecidamente um dos grandes artistas e pensadores engajados da Europa, foi sempre movido por uma curiosidade onívora que, mesmo agora, com o poeta quase octogenário, não parece arrefecer.
No entretempo, seja em sua poesia, seja em sua prosa ensaística, ele abordou tudo o que importava, todas as questões relevantes de um período particularmente diversificado da história. Para alcançar sua meta inalcançável, a saber, formular uma teoria do presente, ele, segundo seu admirador, o crítico italiano Alfonso Berardinelli, valeu-se não somente da poesia e do ensaio em conjunto, como moldou ensaios utilizando elementos construtivos típicos da poesia, enquanto compunha uma poesia autenticamente ensaística.
Seu percurso público tampouco foi menos variado. Principiando-o, inclusive por reação ao totalitarismo de direita cujos efeitos acompanhara pouco antes, como militante da esquerda radical, o alemão, ao contrário do que fizeram seus colegas, não manteve seu engajamento nos limites confortáveis dos corredores universitários. Ele viveu na Alemanha Oriental, em Cuba e terminou conhecendo direito os meandros do socialismo real de modo que, ao romper com este, ele o fez com pleno conhecimento de causa.
Graças à sua necessidade de estudar "por dentro" tudo o que lhe desperta a curiosidade, ele segue preparado como ninguém para identificar onde se encontra hoje em dia o "X" da questão e dos conflitos globais. Discutirei sua interpretação corajosa do terrorismo, "O Perdedor Radical", em outra coluna. Concluo esta traduzindo um texto recente dele que pode ser considerado seu complemento poético.

 

H. M. Enzensberger "Em Jerusalém"

No meio do caminho tem essa pedra estúpida que todos cobiçam Deus sabe por quê.

Parece antiga e, a cada peregrino que passa por ela, que a toca, beija, bate nela a testa sangrenta, fica mais ensebada.

Bloqueia o trânsito, carretas, cargas e guardas, não há, porém, como tirá-la do caminho. Faz muito que está onde está, uma eternidade.

É sagrada. Ninguém sabe para que serve. Bonita ela não é. Mas mesmo alguém como eu a quem não faz falta tropeça nela.


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