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Um mito da caverna
O ermitão Chris Marker, cineasta e fotógrafo parisiense que não se deixa fotografar, é tema de duas mostras em São Paulo
SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL
Chris Marker se esconde
atrás do sorriso de um gato.
Não se deixa fotografar e deu
sua última entrevista, evasiva
até não poder mais, no Second
Life. Diz que se informa pela Al
Jazeera e pelo canto dos passarinhos do 20º arrondissement.
Dá suas opiniões nas tiras do
gatinho Guillaume, que publica
em jornais franceses.
Nascido Christian François
Bouche-Villeneuve, o parisiense de 87 anos simplificou até o
nome para o sintético Chris
Marker. Prefere o silêncio à fala, a tarja preta no lugar de imagens que não interessam.
Duas mostras em São Paulo
vão tentar jogar luz sobre o ermitão Marker. Começa amanhã no Centro Cultural Banco
do Brasil um festival com 33 de
seus filmes. Em julho, o Museu
da Imagem e do Som abre mostra com 200 fotografias de
Marker feitas entre 1952 e
2006. Uma galeria de Nova
York e outra de Moscou também fizeram há pouco retrospectivas da obra do artista.
Marker não saiu de Paris e
seguiu por e-mails lacônicos os
preparativos. "Ele é famoso pela reclusão", diz Bill Horrigan,
que cuidou da mostra no MIS e
diz ser o único curador a fazer
contato, uma vez por ano, com
Marker. "Ele protege sua privacidade num grau excessivo."
Também exagera nas doses
de modéstia. Marker não se
considera um cineasta, mas já
ganhou o Urso de Ouro em Berlim por "Descrição de um Combate", de 1960. Filmou com
Alain Resnais e Jean-Luc Godard, mas diz que só eles são diretores de verdade. Também
não se diz fotógrafo, como foi
seu amigo Henri Cartier-Bresson. Ele não gosta de alarde.
Talvez porque já disse tudo
que tem a dizer em "Sans Soleil". No filme de 1982 que extrapolou os limites do documentário, ele dividiu o mundo
em listas de coisas elegantes,
coisas tristes, coisas que não
valem a pena filmar e coisas
que fazem bater o coração.
Não usa adjetivos, "etiquetas
com o preço das coisas". Traduz
a ideia de que o "horror tem um
nome e tem um rosto" -de
Francis Ford Coppola em
"Apocalypse Now" e, por extensão, Jospeph Conrad no livro
"Coração das Trevas"- à noção
de que "a beleza absoluta também tem nome e rosto".
Por isso não pensa duas vezes, tanto em seus filmes, quanto nas fotos que faz, em estilhaçar o tempo e manter só a fração, uma das 25 num segundo
cinematográfico, detentora
dessa beleza ou desse horror.
Instantes suspensos
"Ele amava a fragilidade desses instantes suspensos, essas
lembranças que serviam apenas para deixar lembranças",
diz a narradora de "Sans Soleil"
sobre o protagonista oculto do
filme, numa descrição que cabe
sem exagero também a Marker.
Ao contrário do cinema tradicional, ele prefere que seus
atores e os flagrados nas ruas
encarem a câmera. Nas manifestações da juventude parisiense, de maio de 1968 a 2002,
na Islândia, em Guiné-Bissau e
em Tóquio, sai em busca desses
instantes privilegiados.
Marker diz que rouba olhares como "um trombadinha rápido, correndo com seu tesouro". Naquele instante, e há centenas deles na mostra do MIS,
ele costuma encontrar o que
chama de "rosto da solidão".
"Naquela fração de segundo,
o operário chileno sabia que a
fábrica nacionalizada era propriedade sua, o boxeador tailandês sabia que tinha perdido,
a esquerdista alemã sabia da
derrota de seu partido", escreveu Marker sobre seus retratos.
Fez imagens das primeiras
eleições na Alemanha depois
da queda do Muro de Berlim, de
ativistas no Brasil, do início da
Perestroika em Moscou, mas
não chama sua obra de política.
"A política não me interessa",
diz. "Me interessa a história."
E a memória. Registrou a
mesma esquina de Paris em
1961 e 2001 para mostrar como
cresceu ali uma árvore, enquanto o resto do mundo permaneceu igual. "Nós não lembramos, recriamos a memória,
como recriamos a história."
Ele acredita na fabricação da
narrativa e do real, usando a
memória como motor estético.
Em "La Jetée", filme de 1962,
seu melhor exemplo desse tempo desconstruído e refeito,
usou só os fotogramas cruciais
para contar a história.
"É preciso que o abandono
seja uma festa, que o adeus receba também uma cerimônia."
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