São Paulo, terça-feira, 23 de junho de 2009

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Um mito da caverna

O ermitão Chris Marker, cineasta e fotógrafo parisiense que não se deixa fotografar, é tema de duas mostras em São Paulo

SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL

Chris Marker se esconde atrás do sorriso de um gato. Não se deixa fotografar e deu sua última entrevista, evasiva até não poder mais, no Second Life. Diz que se informa pela Al Jazeera e pelo canto dos passarinhos do 20º arrondissement. Dá suas opiniões nas tiras do gatinho Guillaume, que publica em jornais franceses.
Nascido Christian François Bouche-Villeneuve, o parisiense de 87 anos simplificou até o nome para o sintético Chris Marker. Prefere o silêncio à fala, a tarja preta no lugar de imagens que não interessam.
Duas mostras em São Paulo vão tentar jogar luz sobre o ermitão Marker. Começa amanhã no Centro Cultural Banco do Brasil um festival com 33 de seus filmes. Em julho, o Museu da Imagem e do Som abre mostra com 200 fotografias de Marker feitas entre 1952 e 2006. Uma galeria de Nova York e outra de Moscou também fizeram há pouco retrospectivas da obra do artista.
Marker não saiu de Paris e seguiu por e-mails lacônicos os preparativos. "Ele é famoso pela reclusão", diz Bill Horrigan, que cuidou da mostra no MIS e diz ser o único curador a fazer contato, uma vez por ano, com Marker. "Ele protege sua privacidade num grau excessivo."
Também exagera nas doses de modéstia. Marker não se considera um cineasta, mas já ganhou o Urso de Ouro em Berlim por "Descrição de um Combate", de 1960. Filmou com Alain Resnais e Jean-Luc Godard, mas diz que só eles são diretores de verdade. Também não se diz fotógrafo, como foi seu amigo Henri Cartier-Bresson. Ele não gosta de alarde.
Talvez porque já disse tudo que tem a dizer em "Sans Soleil". No filme de 1982 que extrapolou os limites do documentário, ele dividiu o mundo em listas de coisas elegantes, coisas tristes, coisas que não valem a pena filmar e coisas que fazem bater o coração.
Não usa adjetivos, "etiquetas com o preço das coisas". Traduz a ideia de que o "horror tem um nome e tem um rosto" -de Francis Ford Coppola em "Apocalypse Now" e, por extensão, Jospeph Conrad no livro "Coração das Trevas"- à noção de que "a beleza absoluta também tem nome e rosto".
Por isso não pensa duas vezes, tanto em seus filmes, quanto nas fotos que faz, em estilhaçar o tempo e manter só a fração, uma das 25 num segundo cinematográfico, detentora dessa beleza ou desse horror.

Instantes suspensos
"Ele amava a fragilidade desses instantes suspensos, essas lembranças que serviam apenas para deixar lembranças", diz a narradora de "Sans Soleil" sobre o protagonista oculto do filme, numa descrição que cabe sem exagero também a Marker.
Ao contrário do cinema tradicional, ele prefere que seus atores e os flagrados nas ruas encarem a câmera. Nas manifestações da juventude parisiense, de maio de 1968 a 2002, na Islândia, em Guiné-Bissau e em Tóquio, sai em busca desses instantes privilegiados.
Marker diz que rouba olhares como "um trombadinha rápido, correndo com seu tesouro". Naquele instante, e há centenas deles na mostra do MIS, ele costuma encontrar o que chama de "rosto da solidão".
"Naquela fração de segundo, o operário chileno sabia que a fábrica nacionalizada era propriedade sua, o boxeador tailandês sabia que tinha perdido, a esquerdista alemã sabia da derrota de seu partido", escreveu Marker sobre seus retratos.
Fez imagens das primeiras eleições na Alemanha depois da queda do Muro de Berlim, de ativistas no Brasil, do início da Perestroika em Moscou, mas não chama sua obra de política. "A política não me interessa", diz. "Me interessa a história."
E a memória. Registrou a mesma esquina de Paris em 1961 e 2001 para mostrar como cresceu ali uma árvore, enquanto o resto do mundo permaneceu igual. "Nós não lembramos, recriamos a memória, como recriamos a história."
Ele acredita na fabricação da narrativa e do real, usando a memória como motor estético. Em "La Jetée", filme de 1962, seu melhor exemplo desse tempo desconstruído e refeito, usou só os fotogramas cruciais para contar a história.
"É preciso que o abandono seja uma festa, que o adeus receba também uma cerimônia."


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