São Paulo, segunda-feira, 23 de julho de 2001

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LIVRO

Candeias põe a mão na cumbuca Boca do Lixo

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Durante anos, Ozualdo Candeias fotografou as pessoas na rua do Triunfo, centro da produção cinematográfica paulista. Durante anos, todo mundo se perguntou o que Candeias queria com aquilo. A resposta está em "Uma Rua Chamada Triumpho", livro que editou quase clandestinamente e que a duras penas Fred Botelho, da locadora 2001 Vídeo, conseguiu colocar à venda.
Candeias é um dos maiores diretores do cinema brasileiro, destacou-se com filmes como "A Margem", "Meu Nome É Tonho", "A Herança" e tantos outros quase sempre pouquíssimo vistos (o que é uma pena e uma perda enorme). O arranjo de suas fotos serve como comprovação, pois página após página depreende-se a complexidade dessa "boca" onde se fez cinema intensamente entre os anos 60 e 80. É até certo ponto fácil dar conta do que foram a Vera Cruz, a Maristela, a Atlântida, ou mesmo o cinema novo. São fenômenos delimitados e relativamente homogêneos.
A Boca do Cinema ou Boca do Lixo, ao contrário, emerge das fotos de Candeias como um emaranhado de tendências e influências. É o ponto de confluência por onde circulam inimigos figadais, como Paulo Emilio Salles Gomes e Ruben Biáfora, a Embrafilme e Primo Carbonari, jovens realizadores de vanguarda e outros semi-analfabetos, figuras históricas como Adhemar Gonzaga e modestos figurantes, técnicos e atrizes da pornochanchada (ou não).
Tudo e todos parecem se encontrar. Com efeito, se encontravam. Ali foi a maior usina de filmes da história do cinema brasileiro. Ali se produziu de "O Bandido da Luz Vermelha" até "A Menina e o Cavalo". Trata-se de uma herança díspar, que vai do melhor ao pior, do notável ao francamente idiota.
Desde aquele tempo, torcia-se o nariz para a Boca, vista muitas vezes como sinônimo de marretagem, o que não é de todo equivocado. Mas ali havia de tudo, luxo, lixo, rebeldia, conformismo etc. E picaretagem. Muita picaretagem saudável, saída de artistas que às vezes mal sabiam escrever um roteiro (não falo da técnica, mas do mínimo domínio da língua).
E no entanto... de tudo isso saía de repente um gênio como José Mojica Marins, um talento não negligenciável como Jean Garrett, por vezes um policial inesperado e brilhante de Cláudio Cunha.
Quem pôs a mão nessa cumbuca? A fundo mesmo ninguém, com exceção de Candeias. Seu trabalho evita toda hierarquização. Ali encontramos, lado a lado, estrelas como Vera Fischer e figurantes, fotógrafos e montadores ilustres e técnicos modestos, assistentes de câmera ou maquinistas cujo nome ninguém guarda.
E, claro, há o bar Soberano, personagem central de toda essa história, pois era em frente dele que se davam as grandes reuniões de fim de tarde, quando as equipes em atividade chegavam da filmagem e encontravam as pessoas que esperavam por trabalho.
A Boca do Lixo é um fenômeno de cinema bem mais complexo do que em geral se imagina. Quem botou a mão nesse jarro de Pandora de onde sai de tudo um pouco? Ninguém, até hoje, a não ser Candeias. Essa documentação extensa e meticulosa é uma pista importantíssima para quem pretende, daqui por diante, tentar compreender a dimensão e a abrangência desse cinema.


Uma Rua Chamada Triumpho
    
Autor: Ozualdo Candeias Editora: edição do autor Quanto: R$ 32 (142 págs.) Onde encontrar: 2001 Vídeo (www.2001.com.br)

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