São Paulo, sexta-feira, 23 de julho de 2004

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DVD/LANÇAMENTOS

"OS TESOUROS PERDIDOS DE ORSON WELLES"

Pacote, que inclui "Falstaff", recupera espírito wellesiano

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Mais do que filmes inacabados e subestimados, "Os Tesouros Perdidos de Orson Welles", pacote em DVD que acaba de chegar às locadoras, recupera a essência, também ela perdida e subestimada, do espírito wellesiano. Esses "tesouros perdidos" são pistas fundamentais para aqueles que ainda teimam em aplicar ao próprio Welles uma pergunta recorrente em seus filmes mais célebres: afinal, quem foi mesmo este homem?
"Não os condeno no meu coração, apenas no meu espírito", dizia Welles sobre os personagens que o consagraram como ator e diretor, tipos faustianos, arrivistas ególatras embriagados pelo poder, canalhas bem ou malsucedidos. Welles não deixava de lhes dedicar toda a sua generosidade criativa.
Primeiro porque, como ator, simpatizava com o que havia de demasiado humano nesses personagens. Depois porque, como autor, dava maior valor aos afetos do que aos juízos. Em espírito, no entanto, Welles esteve sempre mais próximo da bonomia de Falstaff e Dom Quixote, personagens literários clássicos que inspiram duas das obras recuperadas pelo pacote da Continental.
Em "Falstaff" (1965), Welles costura cinco peças de Shakespeare em busca da essência de seu personagem predileto. O mais subestimado personagem de toda a literatura ocidental, segundo Harold Bloom, o crítico canônico. Para Welles, o mais bondoso.
Sábio da consciência humana, espécie de artista de si mesmo, sir John Falstaff reúne tudo aquilo que Welles mais amava em Shakespeare: a força metamórfica de seus personagens, a capacidade de, por uma constante mutação, emprestar nova potência à vida.
"Falstaff", filmado na Espanha por Welles com parcos recursos e uma saúde abalada, foi uma produção complicada, mas nada que se comparasse a "Dom Quixote".
Bancado pelo próprio Welles e filmado, entre o México e a Espanha, de 1955 a 1971, por sete diretores de fotografia diferentes e sem som direto, "Dom Quixote" foi, por sete anos apenas, a mais célebre das obras inacabadas de Welles: entre 1985, ano da morte de Welles, e 1992, ano do lançamento desta versão montada pelo assistente do diretor, Jess Franco.
Versão que não depõe contra Welles, mas contra Franco. Ao irregular, mas rico material deixado por Welles, Franco acrescentou algumas imagens suas, feitas em vídeo, montando tudo sem o menor rigor. Sua montagem está longe de potencializar o ritmo típico da mise-en-scène de Welles, precipitado e descentrado.
A falta de ritmo prejudica especialmente o lado cômico do filme, comprometendo, em definitivo, a bela atuação de Akim Tamiroff como Sancho Pança.
Restam momentos magistrais em que Welles dubla ao mesmo tempo o Sancho de Tamiroff e o Quixote do ator mexicano Francisco Reiguera. Depois da morte de Reiguera (em 1969), Welles ainda filmou com Tamiroff, na Espanha, um belo material. No lugar do mito de Quixote, entra em cena, desta vez, o mito do próprio Welles, essa espécie de celebridade auto-irônica em que se converteu (a mesma da série "Volta ao Mundo com Orson Welles", outra atração do pacote).
Welles surge em cena para confrontar Quixote e sua estranha bondade com o faustiano mundo moderno, começando por ironizar sua própria pose de gênio na TV. "Quixote não era um lunático, mas um autêntico cavalheiro", nos diz ele, nostálgico, quem diria, dos tempos de uma verdadeira nobreza, sempre às voltas com os fantasmas de Shakespeare, Cervantes e Montaigne.


Os Tesouros Perdidos de Orson Welles
     Lançamento: Continental Quanto: R$ 70, em média



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