São Paulo, sábado, 23 de julho de 2005

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CRÍTICA

Correspondência registra o naufrágio de uma época e de seus indivíduos

MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA

Apesar de ter construído uma obra moderna tanto na linguagem quanto nos temas, o escritor americano Scott Fitzgerald encarnou em vida um mito essencialmente romântico: o do artista talentoso que não encontra lugar no mundo, padecendo dos próprios excessos até a morte anunciada e precoce. Parte disso se deve à sua turbulenta relação com a também escritora Zelda Fitzgerald, um longo enredo de ascensão e queda, glamour e miséria, alcoolismo e loucura que há décadas é motivo de fascínio.
O lançamento de uma cuidadosa edição da correspondência entre os dois pode ter seu interesse explicado aí. Embora haja pouca aventura nas cartas: o tom geral está mais próximo do desfecho dos livros de Scott, com seu vago sentimento de perda das ilusões juvenis, do que da efervescência do circuito Nova York-Paris, onde o casal costumava dar escândalos em festas e hotéis. Em boa parte do tempo, Zelda escreve de clínicas psiquiátricas onde foi internada com crises de esquizofrenia e depressão. Há poucos resquícios da garota de Montgomery, Alabama, que aos 18 anos se impressionava com bailes de formatura, piscinas, futebol e um anel brilhante "como os lírios da igreja".
Dividida em capítulos que vão do namoro e casamento, entre 1918 e 1920, até o infarto fatal de Scott, em 1940, a correspondência acompanha um declínio que não seria apenas pessoal, mas de toda uma era. Scott mergulha em álcool e dívidas enquanto a América marcha do esplendor econômico à recessão pós-1929. Exilada numa Europa de futuro sombrio, em 1930, Zelda troca o registro ingênuo dos primeiros tempos "Amo cada minúsculo período de cada dia e de cada noite" pela consciência angustiada do próprio destino: "Estou totalmente humilhada e destroçada".
O livro enterra de vez a tese, ampliada pela estupidez ideológica dos "estudos culturais", de que Zelda teria sido uma vítima de Scott. Ou seja: de que ele agravou a doença dela e reprimiu sua criatividade ao convencê-la, por exemplo, a cortar cenas autobiográficas do romance "Esta Valsa é Minha" (porque coincidiam com trechos de "Suave É a Noite"). O que se lê nas cartas é o contrário: um homem paciente e dedicado, acumulando fracassos em Hollywood e no mercado editorial com o peso de uma parceira oscilante, que para sempre dependeria dele. Como a maior parte do volume é composto por textos de Zelda, a visão emerge da fonte mais insuspeita possível.
Claro que uma história tão trágica não poderia ser contada sem uma dose maciça de sofrimento que não exclui rancor, infidelidade e alguma competição. Mas o que fica ao final da leitura, contraditoriamente, são passagens generosas sobre arte, rotina doméstica e planos para o futuro da filha do casal. É essa ternura que explica a resistência a tantos infortúnios. Uma força que o então jovem Scott, escrevendo a um amigo, definiu de forma premonitória: "Estou apaixonado por ela, e isso é o começo e o fim de tudo".


Michel Laub é autor dos romances "Música Anterior" (2001) e "Longe da Água" (2004), ambos lançados pela Companhia das Letras

Querido Scott, Querida Zelda
   
Autor: F. Scott Fitzgerald e Zelda Sayre Fitzgerald
Organização: Jackson R. Bryer e Cathy W. Barks
Tradução: Beth Vieira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 56,50 (472 págs.)


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