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CRÍTICA
Correspondência registra o naufrágio de uma época e de seus indivíduos
MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA
Apesar de ter construído uma
obra moderna tanto na linguagem quanto nos temas, o escritor
americano Scott Fitzgerald encarnou em vida um mito essencialmente romântico: o do artista talentoso que não encontra lugar no
mundo, padecendo dos próprios
excessos até a morte anunciada e
precoce. Parte disso se deve à sua
turbulenta relação com a também
escritora Zelda Fitzgerald, um
longo enredo de ascensão e queda, glamour e miséria, alcoolismo
e loucura que há décadas é motivo
de fascínio.
O lançamento de uma cuidadosa edição da correspondência entre os dois pode ter seu interesse
explicado aí. Embora haja pouca
aventura nas cartas: o tom geral
está mais próximo do desfecho
dos livros de Scott, com seu vago
sentimento de perda das ilusões
juvenis, do que da efervescência
do circuito Nova York-Paris, onde o casal costumava dar escândalos em festas e hotéis. Em boa
parte do tempo, Zelda escreve de
clínicas psiquiátricas onde foi internada com crises de esquizofrenia e depressão. Há poucos resquícios da garota de Montgomery, Alabama, que aos 18 anos
se impressionava com bailes de
formatura, piscinas, futebol e um
anel brilhante "como os lírios da
igreja".
Dividida em capítulos que vão
do namoro e casamento, entre
1918 e 1920, até o infarto fatal de
Scott, em 1940, a correspondência
acompanha um declínio que não
seria apenas pessoal, mas de toda
uma era. Scott mergulha em álcool e dívidas enquanto a América marcha do esplendor econômico à recessão pós-1929. Exilada
numa Europa de futuro sombrio,
em 1930, Zelda troca o registro ingênuo dos primeiros tempos
"Amo cada minúsculo período de
cada dia e de cada noite" pela
consciência angustiada do próprio destino: "Estou totalmente
humilhada e destroçada".
O livro enterra de vez a tese, ampliada pela estupidez ideológica
dos "estudos culturais", de que
Zelda teria sido uma vítima de
Scott. Ou seja: de que ele agravou
a doença dela e reprimiu sua criatividade ao convencê-la, por
exemplo, a cortar cenas autobiográficas do romance "Esta Valsa é
Minha" (porque coincidiam com
trechos de "Suave É a Noite"). O
que se lê nas cartas é o contrário:
um homem paciente e dedicado,
acumulando fracassos em Hollywood e no mercado editorial com
o peso de uma parceira oscilante,
que para sempre dependeria dele.
Como a maior parte do volume é
composto por textos de Zelda, a
visão emerge da fonte mais insuspeita possível.
Claro que uma história tão trágica não poderia ser contada sem
uma dose maciça de sofrimento
que não exclui rancor, infidelidade e alguma competição. Mas o
que fica ao final da leitura, contraditoriamente, são passagens generosas sobre arte, rotina doméstica e planos para o futuro da filha
do casal. É essa ternura que explica a resistência a tantos infortúnios. Uma força que o então jovem Scott, escrevendo a um amigo, definiu de forma premonitória: "Estou apaixonado por ela, e
isso é o começo e o fim de tudo".
Michel Laub é autor dos romances "Música Anterior" (2001) e "Longe da Água"
(2004), ambos lançados pela Companhia das Letras
Querido Scott, Querida Zelda
Autor: F. Scott Fitzgerald e Zelda Sayre Fitzgerald
Organização: Jackson R. Bryer e Cathy W. Barks
Tradução: Beth Vieira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 56,50 (472 págs.)
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