São Paulo, quinta, 23 de julho de 1998

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Rádio Favela FM sai dos barracos para o mundo

João Wainer/Folha Imagem
Misael Avelino dos Santos (centro) e Nerimar Wanderley Teixeira (dir.) comandam a rádio, num barraco da favela



Rádio comunitária, baseada em favela de Belo Horizonte, opera sem concessão, será representante do Brasil em congresso na Itália em agosto e chega a atingir 4º lugar de audiência na Grande BH


JOÃO WAINER
enviado especial a Belo Horizonte

"É isso aí, companheiro. Você está na favela." Com essa frase, Misael Avelino dos Santos, 33, inicia as transmissões da rádio Favela 104,5 FM todas as manhãs, direto de um barraco da favela Nossa Senhora de Fátima, uma das 11 vilas que formam o aglomerado da Serra, na zona sul de Belo Horizonte. Lá moram 160 mil pessoas, segundo o IBGE.
Fundada em 1981 por cerca de 50 amigos, a rádio, que ainda opera sem concessão pública, começou a funcionar quando não havia luz na favela. Os transmissores eram movidos a bateria de caminhão.
A estação tem hoje uma programação musical eclética. Seus principais programas são "Arapuca Caipira", todas as manhãs, com música sertaneja; "Robertão e os Problemas de Cada um", só com músicas de Roberto Carlos; "Uai Rap Soul", dedicado ao rap nacional; "Peladinha na Favela", programa esportivo; e "Artigo 221", com música regional.
"Totalmente voltada para a comunidade, a estação costuma fazer permutas para ajudar moradores necessitados", conta Nerimar Wanderley Teixeira, 33, um dos fundadores.
"Outro dia chegou aqui um senhor chamado José Moreira. Ele tinha um problema nos dentes e estava sofrendo muito, pois não conseguia atendimento médico. Imediatamente anunciamos na rádio que, se houvesse algum dentista nos escutando, trocaríamos o tratamento de seu José por três meses de propaganda gratuita com o nome e o telefone da clínica na rádio. Na mesma hora o telefone tocou, e nosso amigo foi atendido."
Material escolar
Misael Avelino dos Santos, que também é fundador remanescente, conta que qualquer cantor pode ter sua música divulgada na rádio, desde que, junto com sua fita demo ou CD, traga material escolar para ser distribuído entre as crianças da favela.
"Não importa a qualidade da música. Se trouxerem material para as crianças, nós tocamos", afirma Avelino dos Santos.
As portas da rádio ficam abertas durante todo o dia e qualquer pessoa pode entrar e dar o recado que quiser. "Todos os dias ajudamos pessoas a encontrarem seus filhos perdidos pela favela", diz Henrique de Souza, produtor e faz-tudo da emissora.
Ele conta também a história de um morador da favela que trabalha em Betim, município próximo a Belo Horizonte, e não possui telefone em casa. Ele ligou para a Favela FM dizendo que havia se esquecido de avisar a sua mulher onde deixara o dinheiro do leite.
Pediu então para que Henrique de Souza mandasse um recado pelo rádio avisando que o dinheiro estava escondido embaixo da terceira lata da esquerda para a direita no armário da cozinha.
"Essa é a nossa função", diz Misael, "ajudar a comunidade no que for possível".
Boletins informativos
Além disso, com o auxílio de estudantes de direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a rádio Favela divulga diariamente boletins informativos chamados "Para Que Serve a Política?".
Eles explicam aos moradores como agir diante de violência policial, abuso de autoridade, invasão de domicílio e prisão ilegal, fatos corriqueiros no dia-a-dia da favela. Os boletins ensinam ainda para que servem órgãos como a Corregedoria da Polícia Civil e a Promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público.
O boletim que fala sobre invasão de domicílio por parte da polícia dá as seguintes instruções: "Policiais militares ou civis não têm direito de entrar em sua casa sem ter em mãos um mandado de busca emitido pelo juiz. Caso sua casa seja invadida, fique tranquilo; acompanhe e observe-os no interior de sua residência; anote a placa da viatura e, se possível, o nome dos policiais; faça um relatório com assinatura de duas testemunhas e entregue à Corregedoria da Polícia Civil".
Apesar dos serviços prestados à comunidade, a Favela FM já foi fechada cinco vezes pela polícia desde 1981. Todo o seu equipamento foi apreendido quatro vezes e, em duas ocasiões, tudo foi destruído.
"Na maioria dos casos eles fechavam a rádio pela manhã e nós reabríamos à noite", diz Misael, que responde a quatro inquéritos por transmissão ilegal, artigo 4.117 do Código Penal.
Desde janeiro, quando o projeto de lei que regulamenta as rádios comunitárias foi aprovado no Senado, a Favela FM deixou de ser importunada pela polícia e passou a se considerar rádio comunitária, e não pirata.
Depois de ter seu registro negado em 1995, a estação entrou com um novo pedido de legalização em janeiro. Em 20 de fevereiro, o presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a lei que institui o Serviço de Radiodifusão Comunitária, mas a rádio ainda opera sem concessão.
A Favela FM ganhou duas vezes o Prêmio Dia Mundial sem Drogas, da Organização das Nações Unidas, por seu trabalho de prevenção ao tráfico.
Será ainda a única representante brasileira no Congresso Mundial de Rádios Comunitárias, que será realizado em Milão, na Itália, entre 23 e 30 de agosto próximo, organizado pela Amarc (Associação Mundial de Rádios Comunitárias).
O contato com a rádio Favela pode ser feito pelo telefone (031) 282-1045, pelo fax (031) 282-0054, ou pelo e-mail rfavela@prove.com.br.



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