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NINA HORTA
Doce na estante e flores no prato
Pascal Barbot desmontou minha tese de que se flor fosse gostosa, não haveria um jardim inteiro
VOCÊS NÃO acreditam na minha exaustão. Casa velha raspando, pintando, consertando janela e armários, livrando-se de
papéis e livros. Os cartõezinhos de
feliz isto ou aquilo e as fotos em preto-e-branco, pequeninas, que sobrevivem aos mais queridos. Tanta bobagem entulhando a nossa vida...
O pior não foram as pinturas e as
raspações, mas o pó do chão que sujava a pintura, e o pó da pintura que
sujava o chão. E estamos assim, dando volta nos nossos rabos há dois
meses (lembrem-se, esta é uma coluna de domesticidade). O pó se entranha em absolutamente tudo. O livro chegado ontem da Amazon parece um alfarrábio achado numa escavação em Ouro Preto.
Impressionante o poder da poeira.
Imagino que minhas entranhas estão como a dos mineiros ingleses ou
como as dos que respiram crack nas
esquinas. Minha filha veio me ajudar e, diante da bagunça inarrumável, teoriza que o problema é que faltaram aulas no primário sobre teoria dos conjuntos. Aquilo de lé com
lé, cré com cré. É livro misturado
com doce e panela, quadros com escova de dentes e pesos para exercício muscular com caixinhas e batons
antigos, daquele bem alaranjado que
tinha o nome de uma miss, Luz Marina Zuloaga. Ah, ah, é realmente isso que vai ao meu redor... Realmente
o mal do Brasil é a falta de teoria de
conjuntos, aquela coisa de ter noção
do que vai com o quê.
Demoramos anos para aprender
essa façanha de uso diário. Desde o
pré-primário, lembram-se, juntando bola com bola, triângulo com
triângulo, reta com reta. Como um
pintor e um raspador de chão podem saber que Shakespeare vai com
tragédia, e não com os roteiros de
"Absolutely Fabulous"? Impossível.
Dirão vocês que era minha obrigação guiá-los, mas o trabalho de todo
dia? Confiei.
Consegui uns pequenos espaços
de lazer. Este foi o mês do Boa Mesa,
de comilança geral, e perdi todas. Só
fui comer o jantar de Pascal Barbot,
um cozinheiro três estrelas que passou por aqui, com uma cara de menino, um simpático leprechaun holandês que desmontou minha tese de
que se flor fosse gostosa, não haveria
um jardim inteiro. Alguém já viu
meninos saltando muro atrás de
margaridas ou rosas? E de manga?
Pois é. Era uma comida gostosa,
não toda, porque os cozinheiros que
vêm para cá resolvem mostrar que
sabem também lidar com com nossas frutas e haja maracujá. Gostei de
uma farofinha de brioche com o peixe. Tenho confirmado pelas minhas
últimas comilanças que o mais "in"
dos "ins" é um caldo feito com carinho extremo, transparente, leves
pingos de coisas que você sabe o que
são, mas não identifica, e legumezinhos perfeitos boiando nele. É para
os muito sofisticados, porque para
cada cenourinha mini daquelas, 30
foram afastadas como imperfeitas.
Para cada rabanete esférico, morreram 300 concorrentes, loucos para
mergulhar no calor daquela sopa. E
as florezinhas, tremebundas, lilás,
rosadas, flores das próprias ervas
que não foram usadas, enfim, uma
sinfonia de frescura e frescor, caldos
bem diferentes daqueles pedaçudos
que costumávamos comer na infância, com cheiro de tutano. Eu não
gostava daqueles, detesto sopa, não
estou me lamuriando pelo passado,
só constatando modas.
Vi a Mari Hirata, minha cozinheira preferida, minha professora preferida, mas não agüentei ir cozinhar
com ela e minha cunhada nem ir à
Liberdade nem à Cantareira. O jantarzinho fruto desse encontro de
três dias está se realizando agora,
neste minuto em que vos escrevo
com os nervos à flor da pele. Foi tudo à la japonaise, pelo que sei. Já experimentei o tofu da Mari. Não tem
absolutamente nada a ver com tofu
nenhum. É uma coisa leve, cheirosa,
que você comeria quilos, como maria-mole, gulosa.
Que pena... Perdi os encontros
anuais por causa da maldita falta da
teoria dos conjuntos.
ninahorta@uol.com.br
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