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Crítica/"O Desprezo"
Em filme de encontros, arte de Godard se mostra plena
Lançamento inclui documentários de época e entrevistas entre os extras
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
"O Desprezo" é um filme de encontros.
O de Godard com
BB, para começar: dois ícones
da Europa pós-pós-guerra, em
trajetos até então opostos: Brigitte Bardot, símbolo do cinema comercial, e Godard, símbolo do cinema-como-arte.
Também encontro entre o
novo e o eterno: Jack Palance, o
produtor de cinema, deus do
presente, e a Grécia de Homero, da "Odisséia". Encontro entre o clássico e o moderno: Fritz
Lang, que faz o diretor que vai
filmar "A Odisséia", e Godard,
que faz seu assistente. Evoca-se
a possibilidade de o cinema reconstruir qualquer lugar. A corrida de Piccoli pelas ruas de Cinecittà são um momento antológico, em que Godard filma as
"ruas de cinema" do estúdio e a
verdade dessas ruas, que recebemos como espectadores
quando vemos um filme.
O cinema de Godard teve
sempre, como prioridade, um
aspecto documental, o desejo
de captar um aspecto da atualidade. Por uma vez, seu olho parece mirar outros horizontes.
Existe, primeiro, a intriga, a crise conjugal entre o roteirista
(Michel Piccoli) e a atriz (Bardot). Godard a leva a sério, mas
não como o cineasta clássico. É
um instante que parece concerni-lo: quando BB deixa de amar
o marido e passa a desprezá-lo.
Não nos é explicado. O mundo é
o que ele é. Podemos buscar as
ressonâncias, não as causas. É o
mistério da mulher, de sua decisão, de seu rosto que permanecerão para sempre perturbadores em "O Desprezo".
O drama conjugal puxa todos
os demais. Lá está o produtor
de cinema, com sua previsível
impaciência com a cultura e
suas demonstrações de potência. Lá está Lang, como que
ciente de sua grandeza, mas
também da insuficiência dessa
grandeza. E BB. E Palance.
Cinema clássico
Parece que Godard empenha-se em trabalhar sobre um
feixe de contradições amplo.
Tão amplo, que o set de filmagem parece uma Babel, cheia de
línguas cujas distâncias uma
tradutora procura aplainar.
Uma língua os une, que é o cinema. E o cinema surge como o
elemento de atualidade que
nunca falta a Godard.
Porque existe uma diferença
entre o ambiente descrito e o
cinema godardiano. Aqui estão
os estúdios, as câmeras pesadas, esse aparato próprio de um
cinema que parece pronto para
morrer: o cinema clássico.
O mistério da mulher, o cinema, o amor, a aventura, o tempo, a eternidade -esses temas
surgem e se desenvolvem num
dos filmes em que a arte de Godard se mostra de maneira
mais plena. Observemos apenas a beleza de cada enquadramento, a limpidez das cores, a
disposição dos corpos no cinemascope: "O Desprezo" é um
filme muito acessível, em que
quem reprova no cineasta a
obscuridade (como se fosse sinal de incompetência) só ganhará ao rever seus conceitos.
Por fim: os bons extras do DVD
incluem documentários de
época e entrevistas.
O DESPREZO
Direção: Jean-Luc Godard
Distribuidora: Universal (R$ 40)
Avaliação: ótimo
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