São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2007

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Crítica/"O Desprezo"

Em filme de encontros, arte de Godard se mostra plena

Lançamento inclui documentários de época e entrevistas entre os extras

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"O Desprezo" é um filme de encontros. O de Godard com BB, para começar: dois ícones da Europa pós-pós-guerra, em trajetos até então opostos: Brigitte Bardot, símbolo do cinema comercial, e Godard, símbolo do cinema-como-arte.
Também encontro entre o novo e o eterno: Jack Palance, o produtor de cinema, deus do presente, e a Grécia de Homero, da "Odisséia". Encontro entre o clássico e o moderno: Fritz Lang, que faz o diretor que vai filmar "A Odisséia", e Godard, que faz seu assistente. Evoca-se a possibilidade de o cinema reconstruir qualquer lugar. A corrida de Piccoli pelas ruas de Cinecittà são um momento antológico, em que Godard filma as "ruas de cinema" do estúdio e a verdade dessas ruas, que recebemos como espectadores quando vemos um filme.
O cinema de Godard teve sempre, como prioridade, um aspecto documental, o desejo de captar um aspecto da atualidade. Por uma vez, seu olho parece mirar outros horizontes. Existe, primeiro, a intriga, a crise conjugal entre o roteirista (Michel Piccoli) e a atriz (Bardot). Godard a leva a sério, mas não como o cineasta clássico. É um instante que parece concerni-lo: quando BB deixa de amar o marido e passa a desprezá-lo.
Não nos é explicado. O mundo é o que ele é. Podemos buscar as ressonâncias, não as causas. É o mistério da mulher, de sua decisão, de seu rosto que permanecerão para sempre perturbadores em "O Desprezo".
O drama conjugal puxa todos os demais. Lá está o produtor de cinema, com sua previsível impaciência com a cultura e suas demonstrações de potência. Lá está Lang, como que ciente de sua grandeza, mas também da insuficiência dessa grandeza. E BB. E Palance.

Cinema clássico
Parece que Godard empenha-se em trabalhar sobre um feixe de contradições amplo.
Tão amplo, que o set de filmagem parece uma Babel, cheia de línguas cujas distâncias uma tradutora procura aplainar.
Uma língua os une, que é o cinema. E o cinema surge como o elemento de atualidade que nunca falta a Godard.
Porque existe uma diferença entre o ambiente descrito e o cinema godardiano. Aqui estão os estúdios, as câmeras pesadas, esse aparato próprio de um cinema que parece pronto para morrer: o cinema clássico.
O mistério da mulher, o cinema, o amor, a aventura, o tempo, a eternidade -esses temas surgem e se desenvolvem num dos filmes em que a arte de Godard se mostra de maneira mais plena. Observemos apenas a beleza de cada enquadramento, a limpidez das cores, a disposição dos corpos no cinemascope: "O Desprezo" é um filme muito acessível, em que quem reprova no cineasta a obscuridade (como se fosse sinal de incompetência) só ganhará ao rever seus conceitos.
Por fim: os bons extras do DVD incluem documentários de época e entrevistas.


O DESPREZO
Direção:
Jean-Luc Godard
Distribuidora: Universal (R$ 40)
Avaliação: ótimo


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