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MARCELO COELHO
Sobre patrulhas, terrorismo e enrolação
Voltou à moda falar em
"patrulhas ideológicas". Ficou fácil -e tem um certo ar de
queixa infantil- dizer-se "patrulhado" diante de qualquer crítica
que se venha a receber. Desse jeito, o termo perde o sentido, se é
que tinha algum.
Afinal, qual a diferença entre
patrulha ideológica e crítica política? Em 1979, quando o debate
estava no auge, Fernando Gabeira deu uma entrevista sobre o assunto. O texto foi republicado em
"70/800- Cultura em Trânsito",
de Elio Gaspari, Heloisa Buarque
de Hollanda e Zuenir Ventura
(editora Aeroplano).
Militante de esquerda, recém-chegado do exílio, Gabeira tinha
aparecido na praia usando uma
minúscula tanga de crochê cor-de-rosa. Muita gente estranhou.
Na entrevista, Gabeira dizia que,
se alguém viesse questioná-lo pelo
fato de estar usando aquela tanga, ele diria: "Uso, e o fato de eu
usar tanga e você ser contra isso é
um problema político, vamos discutir".
Sexo, drogas, ecologia, rock, feminismo, tudo isso era considerado questão secundária pela esquerda ortodoxa. Admitindo-se
que Gabeira tenha sido "patrulhado" naquela época, o importante a notar é que ele estava propondo, com sua atitude, uma ampliação do debate político.
Gabeira não era uma vítima
inocente da estreiteza ideológica
dos que o condenavam. De caso
pensado, estava provocando uma
discussão que alguns setores da
esquerda não julgavam importante fazer.
Seria provavelmente diverso o
caso de um cineasta que, decidindo fazer um filme escapista, superficial e mercadológico, reclamasse dos críticos que tivessem
apontado esses defeitos. O cineasta poderia dizer, com razão: "Tenho o direito de ser alienado e de
fazer filmes caça-níqueis". Mas
reclamar de "patrulha ideológica", nesse caso, seria simplesmente fugir da crítica, e não há legitimidade intelectual nessa atitude.
Claro que a esquerda pode ser
muito chata e estreita em suas
avaliações estéticas; apontar essa
estreiteza é diferente de querer
abafar a discussão. Veja-se o caso
de "Cidade de Deus". O filme sofreu muitas críticas, certas ou erradas, mas, para defendê-lo, não
foi preciso invocar a idéia das
"patrulhas".
De qualquer modo, não há razão para associar o termo exclusivamente à esquerda. Se "patrulha
ideológica" é sinônimo de queimação política, de desqualificação do adversário, de xingamento
sem aprofundamento da discussão, quem se especializou nisso
durante o governo FHC foi a direita -há um bom tempo hegemônica do ponto de vista doutrinário.
Quem criticasse as privatizações ou a política monetária do
governo era chamado de "jurássico", "neobobo" etc. O jornalista
Aloysio Biondi, quando fez na
ponta do lápis o cálculo daquilo
que se ganhou e daquilo que se
gastou com as privatizações, foi
patrulhado, xingado, menosprezado a valer.
Regina Duarte está sendo patrulhada? A campanha de Serra
está sendo terrorista? Respondo
"sim" às duas perguntas.
A questão do medo -medo de
que a inflação volte, medo de um
calote na dívida externa, medo de
uma crise como a da Argentina-
é pertinente. Tanto que as atitudes de Lula têm sido justamente
no sentido de afastar esse medo,
com o candidato mostrando-se
negociador, garantindo que os
contratos serão cumpridos etc.
Proponho um exercício retórico.
Imagine-se que Serra estivesse
melhorzinho nas pesquisas. Então surge uma atriz no horário
eleitoral de Lula. Faz cara dramática e diz o seguinte.
"Tenho medo. Tenho medo do
que possa ser um governo Serra.
O candidato não tem carisma
pessoal. Arranja inimizades até
dentro do próprio partido. Seu jogo é ambíguo: não se sabe o que
ele quer preservar e o que ele quer
mudar na política do atual governo. Será que uma pessoa assim
vai poder unificar o país, criar um
clima de confiança para atravessar os desafios que vêm por aí? Ele
pode até dizer que tem competência técnica. Mas tem liderança
política? Olha o caso do De la Rúa
na Argentina. Ele tinha toda a seriedade do mundo. Mas... o que
vimos foi caos. Pânico. Horror.
Etc. etc."
O que dizer de um discurso desses? Seria um ataque pessoal a
Serra? Um ato de terrorismo?
Uma opinião subjetiva? Uma crítica política? Um pouco de tudo
isso. Mas me parece expressar inquietações legítimas.
Pode-se argumentar que não há
resposta possível quando a crítica
é baseada em impressões subjetivas, como nos discursos do tipo
"tenho medo". Mas, quando alguém mostra o rosto do candidato, fala de sua biografia, mostra
suas realizações ou as de seu partido e conclui "neste você pode
confiar", a discussão se dá em torno de várias coisas ao mesmo
tempo -programa, ideologia,
personalidade, coerência, confiabilidade...
Dizer que essas discussões não
podem ser feitas é, sem dúvida,
patrulha ideológica. Dizer que
com Lula haverá o caos (e com
Serra não) é, sem dúvida, terrorismo primário. O melhor seria enfrentar a questão até o fim.
O característico desta campanha, entretanto, é que ninguém
quer discutir nada. Qualquer pergunta mais concreta, qualquer
dúvida, qualquer crítica é vista
como fator de desestabilização.
Isso não é culpa apenas da suscetibilidade à flor da pele de petistas e tucanos. Tudo é desestabilizador, porque é instável ao extremo a própria situação do país. As
candidaturas são fruto de uma
delicadíssima operação de marketing e de engenharia financeira. Títulos de curto prazo e promessas de futuro: transita-se da
rolagem para a enrolação e vice-versa.
Nesse sentido, a única coisa
ideológica da atual campanha é a
patrulha. Quanto a críticas reais,
o silêncio é ensurdecedor.
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