São Paulo, quarta-feira, 23 de outubro de 2002

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MARCELO COELHO

Sobre patrulhas, terrorismo e enrolação

Voltou à moda falar em "patrulhas ideológicas". Ficou fácil -e tem um certo ar de queixa infantil- dizer-se "patrulhado" diante de qualquer crítica que se venha a receber. Desse jeito, o termo perde o sentido, se é que tinha algum.
Afinal, qual a diferença entre patrulha ideológica e crítica política? Em 1979, quando o debate estava no auge, Fernando Gabeira deu uma entrevista sobre o assunto. O texto foi republicado em "70/800- Cultura em Trânsito", de Elio Gaspari, Heloisa Buarque de Hollanda e Zuenir Ventura (editora Aeroplano).
Militante de esquerda, recém-chegado do exílio, Gabeira tinha aparecido na praia usando uma minúscula tanga de crochê cor-de-rosa. Muita gente estranhou. Na entrevista, Gabeira dizia que, se alguém viesse questioná-lo pelo fato de estar usando aquela tanga, ele diria: "Uso, e o fato de eu usar tanga e você ser contra isso é um problema político, vamos discutir".
Sexo, drogas, ecologia, rock, feminismo, tudo isso era considerado questão secundária pela esquerda ortodoxa. Admitindo-se que Gabeira tenha sido "patrulhado" naquela época, o importante a notar é que ele estava propondo, com sua atitude, uma ampliação do debate político.
Gabeira não era uma vítima inocente da estreiteza ideológica dos que o condenavam. De caso pensado, estava provocando uma discussão que alguns setores da esquerda não julgavam importante fazer.
Seria provavelmente diverso o caso de um cineasta que, decidindo fazer um filme escapista, superficial e mercadológico, reclamasse dos críticos que tivessem apontado esses defeitos. O cineasta poderia dizer, com razão: "Tenho o direito de ser alienado e de fazer filmes caça-níqueis". Mas reclamar de "patrulha ideológica", nesse caso, seria simplesmente fugir da crítica, e não há legitimidade intelectual nessa atitude.
Claro que a esquerda pode ser muito chata e estreita em suas avaliações estéticas; apontar essa estreiteza é diferente de querer abafar a discussão. Veja-se o caso de "Cidade de Deus". O filme sofreu muitas críticas, certas ou erradas, mas, para defendê-lo, não foi preciso invocar a idéia das "patrulhas".
De qualquer modo, não há razão para associar o termo exclusivamente à esquerda. Se "patrulha ideológica" é sinônimo de queimação política, de desqualificação do adversário, de xingamento sem aprofundamento da discussão, quem se especializou nisso durante o governo FHC foi a direita -há um bom tempo hegemônica do ponto de vista doutrinário.
Quem criticasse as privatizações ou a política monetária do governo era chamado de "jurássico", "neobobo" etc. O jornalista Aloysio Biondi, quando fez na ponta do lápis o cálculo daquilo que se ganhou e daquilo que se gastou com as privatizações, foi patrulhado, xingado, menosprezado a valer.
Regina Duarte está sendo patrulhada? A campanha de Serra está sendo terrorista? Respondo "sim" às duas perguntas.
A questão do medo -medo de que a inflação volte, medo de um calote na dívida externa, medo de uma crise como a da Argentina- é pertinente. Tanto que as atitudes de Lula têm sido justamente no sentido de afastar esse medo, com o candidato mostrando-se negociador, garantindo que os contratos serão cumpridos etc.
Proponho um exercício retórico. Imagine-se que Serra estivesse melhorzinho nas pesquisas. Então surge uma atriz no horário eleitoral de Lula. Faz cara dramática e diz o seguinte.
"Tenho medo. Tenho medo do que possa ser um governo Serra. O candidato não tem carisma pessoal. Arranja inimizades até dentro do próprio partido. Seu jogo é ambíguo: não se sabe o que ele quer preservar e o que ele quer mudar na política do atual governo. Será que uma pessoa assim vai poder unificar o país, criar um clima de confiança para atravessar os desafios que vêm por aí? Ele pode até dizer que tem competência técnica. Mas tem liderança política? Olha o caso do De la Rúa na Argentina. Ele tinha toda a seriedade do mundo. Mas... o que vimos foi caos. Pânico. Horror. Etc. etc."
O que dizer de um discurso desses? Seria um ataque pessoal a Serra? Um ato de terrorismo? Uma opinião subjetiva? Uma crítica política? Um pouco de tudo isso. Mas me parece expressar inquietações legítimas.
Pode-se argumentar que não há resposta possível quando a crítica é baseada em impressões subjetivas, como nos discursos do tipo "tenho medo". Mas, quando alguém mostra o rosto do candidato, fala de sua biografia, mostra suas realizações ou as de seu partido e conclui "neste você pode confiar", a discussão se dá em torno de várias coisas ao mesmo tempo -programa, ideologia, personalidade, coerência, confiabilidade...
Dizer que essas discussões não podem ser feitas é, sem dúvida, patrulha ideológica. Dizer que com Lula haverá o caos (e com Serra não) é, sem dúvida, terrorismo primário. O melhor seria enfrentar a questão até o fim.
O característico desta campanha, entretanto, é que ninguém quer discutir nada. Qualquer pergunta mais concreta, qualquer dúvida, qualquer crítica é vista como fator de desestabilização.
Isso não é culpa apenas da suscetibilidade à flor da pele de petistas e tucanos. Tudo é desestabilizador, porque é instável ao extremo a própria situação do país. As candidaturas são fruto de uma delicadíssima operação de marketing e de engenharia financeira. Títulos de curto prazo e promessas de futuro: transita-se da rolagem para a enrolação e vice-versa.
Nesse sentido, a única coisa ideológica da atual campanha é a patrulha. Quanto a críticas reais, o silêncio é ensurdecedor.


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