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"CARTAS A UM JOVEM TERAPEUTA"
Livro responde dúvidas de profissionais
Calligaris reflete sobre os dois lados do processo psicanalítico
JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Certos livros portam o selo
da maturidade de quem os
escreveu. "Cartas a um Jovem Terapeuta", do colunista da Folha
Contardo Calligaris, é um deles. O
volume é composto por uma série
de respostas a jovens profissionais que pediram a opinião de Calligaris sobre a prática psicoterápico-psicanalítica.
O assunto, pode-se imaginar, é
gigantesco. Estende-se dos problemas técnicos pontuais às mais
espinhosas questões sobre teoria
da subjetividade.
Tópicos como duração e pagamento de sessões; primeiras entrevistas; valor do diagnóstico; requisitos universitários para o
exercício da profissão; escolha de
instituições de formação; convívio na comunidade de analistas;
critérios de aceitação de clientes e
avaliação do processo de cura; relação entre condicionamento cultural e condicionamento biográfico dos sofrimentos mentais etc.
são abordados ao longo do texto
com precisão e maestria, em uma
prosa de bem com a vida, que
mostra o espontâneo domínio do
autor sobre o que fala.
Calligaris, por formação intelectual e inteligência, poderia ter escrito um tratado indigesto sobre
"prática analítica". Não lhe faltam
destreza discursiva e erudição para usar e abusar de teoria do conhecimento, fenomenologia do
corpo, lingüística, sociologia do
individualismo, história das mentalidades, sem contar, é óbvio, a
familiaridade que tem com os
grandes clássicos da psicanálise.
Nada disso prende sua atenção
ao se dirigir aos jovens terapeutas.
O estofo teórico, certamente, permite-lhe vasculhar o edifício psicanalítico com segurança. Sua
preocupação, entretanto, é cavar
até onde a pá entorta para chegar
ao coração do sofrimento humano. Teorias, ele sugere, podem facilmente encantar, mas nunca
acordar o terapeuta imerso em
devaneios narcísicos.
Temas como a "curvatura da
pulsão" -dado como exemplo
bem-humorado de um certo gosto por especiarias conceituais-
podem ser amáveis quebra-cabeças para momentos de lazer. Para
a prática psicoterápico-psicanalítica, no entanto, não são nem
mais nem menos decisivos do que
saber "quantos anjos -em pé ou
deitados- cabem na cabeça de
um alfinete"!
Ir direto ao sofrimento humano, contudo, não é fazer o elogio
do sentimentalismo; é pensar sobre o sentido da cura. Neste ponto, o som da maturidade faz-se
ouvir. Calligaris centra a discussão em dois temas cruciais para a
prática clínica, os atributos requeridos para quem quer ser analista
e os atributos exigidos de quem
quer se analisar.
Nos dois casos, trata-se de refletir sobre as qualidades pessoais
que habilitam ambos os atores ao
exercício do processo analítico.
Do lado do terapeuta-analista, o
grande enigma é o da sensibilidade para com a variabilidade expressiva da vida humana; do lado
do analisando, a disponibilidade
para sentir-se implicado naquilo
que pensa, deseja ou faz.
Por trás da simplicidade da formulação, encontra-se o conflito
entre o impulso para a liberdade e
o conforto em pertencer a um
corpo de valores e instituições,
sem o qual o primeiro termo da
equação perderia a razão de ser.
Na prática, diz Calligaris, não há
saída fácil para o dilema.
Seja como for, o psicanalista deve evitar, tanto quanto possível,
ser um moralista. Isto é, deve
"considerar a variedade das vidas
e das condutas com carinho e indulgência", em função de sua experiência de vida. Sem a consciência de que seus próprios desejos
são singulares e, muitas vezes,
contrários à herança moral recebida, ele corre o risco de julgar o
outro sem considerar o que
Freud, a duras penas, revelou: em
algum lugar do passado, do presente ou do futuro, mostramos ou
mostraremos que somos todos
existências em aberto, na procura
incessante de satisfação, que pode
se realizar no melhor e no pior.
Assim, o que torna o analista
apto a escutar o sofrimento alheio
não é a pretensão de ser um lírio
no lodo, mas o esforço para não
converter seu desejo em poder sobre o desejo do outro. A força da
transferência não pode se tornar
golpe de violência.
De modo similar, o candidato à
análise não pode fazer do sintoma
álibi para a demissão de si. Desonerar-se de pensar sobre o que se
faz, disse Hannah Arendt, é dar as
costas à homologia consigo mesmo; desistir de ser sujeito, diz Calligaris, é imaginar que a homologia foi encontrada na submissão a
ideais coletivos ou individuais de
pureza moral, religiosa, política,
econômica, étnica, racial, artística
ou mesmo psicanalítica.
Quem admite a dúvida sobre o
que é pode ser ajudado a assumir
a responsabilidade para com a incompletude; quem acha que já
achou a verdade, dificilmente
abandonará o gozo com a irresponsabilidade para consigo e com
a crueldade para com os outros.
Em resumo, "Cartas a um Jovem Terapeuta" é uma meditação
psicanalítica simpaticamente oferecida a todos. Um texto denso
sem prepotência e irônico sem
ressentimentos. É bom encontrar
alguém que faz, com mais perícia
e talento, o que gostaríamos de ter
feito. Ganhamos todos. O público
interessado na questão, os especialistas, a literatura analítica brasileira e, em especial, os jovens terapeutas e os analisados em busca
de uma psicanálise humanamente útil.
Jurandir Freire Costa é psicanalista e
professor titular de medicina social na
Universidade do Estado do RJ. É autor
de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (editora Rocco)
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