São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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Sem Shirley Horn, jazz perde sua suavidade

Cantora e pianista, que sofria de diabetes, morreu aos 71 anos

CARLOS CALADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O jazz perdeu uma de suas vozes mais sublimes, talvez a mais suave delas. A cantora e pianista norte-americana Shirley Horn morreu aos 71 anos, após uma longa batalha contra a diabetes. Nem mesmo a amputação de seu pé direito, em 2002, a impediu de se manter nos palcos.
Seu estilo vocal era único, uma marca registrada. Apreciadora de baladas românticas e lentas, cantava como se sussurrasse. Entre cada palavra ou frase das canções, introduzia longos espaços de silêncio, procedimento que reforçava a atmosfera intimista, o tom "cool" de suas interpretações.
"Espaço é umas das coisas mais importantes para mim, porque me dá tempo para sentir o que estou cantando. Quero que o ouvinte sinta o que estou sentindo", disse em 2003, dias antes de vir pela última vez ao Brasil, para se apresentar no Tim Festival.
Nascida em Washington, onde passou quase toda a vida, Shirley Horn começou a estudar piano aos quatro anos. Aprendeu a cantar ouvindo outras grandes divas do jazz que a precederam, como Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Carmen McRae. "Tive a sorte de surgir depois dos grandes dinossauros", brincava, referindo-se a essa geração.
Lançado em 1960, "Embers and Ashes", seu disco de estréia, impressionou o trompetista Miles Davis, que a convidou a abrir uma de suas temporadas no lendário clube Village Vanguard, em Nova York, no ano seguinte. O impacto dessas apresentações levou-a gravar outros discos, como "Shirley Horn With Horns" (1963), produzido pelo influente Quincy Jones.
Quando tudo indicava que ela se tornaria logo uma grande estrela, o nascimento da filha Rainy estimulou-a a reduzir drasticamente o ritmo da carreira, em meados dos anos 60. Para se dedicar mais à família, durante as duas décadas seguintes, só fez temporadas ocasionais em Washington e algumas gravações para um selo europeu.
Sua redescoberta pelo grande público se deu a partir de 1986. Contratada pelo selo de jazz Verve, gravou 14 discos. Em "You Won't Forget Me" (1990) contou com participações dos trompetistas Miles Davis e Wynton Marsalis, assumidos desafetos. Também gravou CDs dedicados às obras de Davis ("I Remember Miles", 1997) e Ray Charles ("Light Out of Darkness", 1993).
Fã da música brasileira, em outras vindas ao país participou de homenagens a Tom Jobim: no Free Jazz Festival, em 1993, e no Heineken Concerts, em 1999. Chegou até a planejar um projeto com Jobim, mas não tiveram tempo para isso. "Ele era a pessoa certa para me mostrar qual seria o espírito de um disco brasileiro", dizia, lamentando a morte do compositor, ocorrida em 1994.
Apesar de servir de exemplo a outras cantoras e pianistas, como a canadense Diana Krall ou a brasileira Eliane Elias, Shirley Horn não chega a deixar herdeiras. Talvez seu estilo tão pessoal tenha desestimulado possíveis seguidoras: qualquer imitação seria flagrada facilmente.
Jon Pareles, crítico do jornal "New York Times", foi feliz ao escrever que uma canção poderia se considerar sortuda ao ser escolhida por Shirley Horn. Afinal, ela era capaz de transformar até uma lista de supermercado em algo musical. Como nós, as canções eleitas pela diva da suavidade estão se sentindo órfãs.


Carlos Calado é jornalista e crítico musical, autor de "O Jazz Como Espetáculo"

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