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WALTER SALLES
A Fronteira
No início, havia o "wallmapu" -toda a terra. Um
território que incluía o sul do que
é hoje o Chile e boa parte da Argentina. O oceano era o limite. O
lugar onde a terra acabava.
Ali viviam os Mapuches -literalmente, "gente da terra". Hoje,
a população mapuche que sobreviveu aos efeitos da ocupação de
seu território está separada pela
fronteira entre o Chile e a Argentina. Como os Apaches, que vivem entre o México e os Estados
Unidos, ou os Lacandones, entre o
México e a Guatemala.
Estamos em Temuko, no Chile,
cidade fronteira por excelência. A
tensão que existe na capital da região mais pobre do Chile é palpável. Antigo forte militar, Temuko
é o local onde se concentra a
maior população mapuche do
país. Um movimento de recuperação da terra que foi tomada pelos imigrantes de origem européia
está em curso. E nesta semana,
um jovem mapuche de 18 anos foi
morto num confronto com os carabineiros, a temível polícia chilena.
No último dia de filmagem que
tivemos em Temuko, a cidade virou uma praça de guerra. Manifestantes mapuches, estudantes e
trabalhadores saíram às ruas para protestar contra a violência policial. Os carabineiros responderam com mais violência. Dezenas
de pessoas foram presas. O comércio fechou as portas durante todo
o dia.
"Vocês conheceram a sociedade
mapuche em estado de catarse",
nos diz Jose Ancán, sociólogo e intelectual mapuche que trabalhou
no filme que estamos fazendo. "O
desafio do indígena na América
Latina é ser forte sem ser violento.
Mas como fazer isso?", completa.
Gael Garcia Bernal, um dos atores do filme, nos diz que o que está
ocorrendo frente aos nossos olhos
lembra o início do movimento zapatista em Chiapas, no México,
país onde nasceu. Jose Ancán, por
seu lado, tenta ajudar a população mapuche de forma específica:
"Nós somos uma geração que tenta resignificar a cultura mapuche", nos diz.
Uma cultura que revive. Os jovens mapuches voltam a falar a
língua de seus ancestrais. Durante os 15 dias em que ficamos em
Temuko, filmamos várias cenas
com mapuches de idades diferentes. Como Samuel, 17 anos, que
vive no campo e que, junto com
seus quatro irmãos, formou um
grupo de teatro que se apresenta
em escolas e universidades. Em
cena, Samuel sai improvisando
um texto que mescla espanhol
com a língua mapuche e interage
com os outros atores de uma forma que nos surpreende a todos.
Mais tarde, Samuel nos apresenta a seu irmão Victor, 25 anos,
diretor do grupo de teatro, pintor
e escritor. Victor fala de forma
pausada e reflexiva. Nos referimos a sua avó, que também participou da filmagem. Ela tem mais
de cem anos, mas não se sabe sua
idade ao certo. E, também, não
importa. "Para os mapuches, o
tempo nasce com uma pessoa e
morre com ela", nos diz Victor.
Por isso, perguntar quantos
anos tem exatamente a civilização mapuche não faz muito sentido. As estações, os dias e as noites
são formas de contar o tempo tão
importantes quanto o "we tripantu", o ano novo, comemorado na
noite do solstício de inverno.
Amanhã seguimos caminho. À
noite, nos encontramos com Jose
Ancán, Samuel e Victor pela última vez nesta viagem. Falamos
um pouco da filmagem, dos problemas que às vezes tivemos. Mas
logo a conversa volta a ser política, fazendo referência ao combate
que acaba de ser travado nas ruas
de Temuko.
Antes de partir, Jose Ancán nos
confia um texto que escreveu para a equipe nesse dia de despedida. O título é "Sobre medos e pesadelos na fronteira".
Reproduzo um trecho a seguir:
"Por trás dos rostos morenos e
dos olhos achinesados que vendem verduras na feira, podam
jardins e cuidam de crianças no
bairro inglês, por trás dessa submissão coletiva derivada da derrota e da violência infligida, há a
questão da propriedade da terra e
da convivência interétnica de toda uma região. Ao primeiro sinal
de revolta mapuche, lojas se fecham. Surge o medo. Um tipo peculiar de medo: irracional e disforme como sempre é o temor que
se tem pelo que foi depreciado durante tantos anos. Temor de um
futuro e hipotético acerto de contas".
Termino de ler o texto de Ancán. Poderia valer para tantas
outras latitudes desse continente
em transe.
Tempo de retomar a estrada,
em direção a Valparaíso e ao deserto de Atacama.
Mari mari. Ou seja, um bom dia
para todos.
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