São Paulo, sábado, 23 de novembro de 2002

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WALTER SALLES

A Fronteira

No início, havia o "wallmapu" -toda a terra. Um território que incluía o sul do que é hoje o Chile e boa parte da Argentina. O oceano era o limite. O lugar onde a terra acabava.
Ali viviam os Mapuches -literalmente, "gente da terra". Hoje, a população mapuche que sobreviveu aos efeitos da ocupação de seu território está separada pela fronteira entre o Chile e a Argentina. Como os Apaches, que vivem entre o México e os Estados Unidos, ou os Lacandones, entre o México e a Guatemala.
Estamos em Temuko, no Chile, cidade fronteira por excelência. A tensão que existe na capital da região mais pobre do Chile é palpável. Antigo forte militar, Temuko é o local onde se concentra a maior população mapuche do país. Um movimento de recuperação da terra que foi tomada pelos imigrantes de origem européia está em curso. E nesta semana, um jovem mapuche de 18 anos foi morto num confronto com os carabineiros, a temível polícia chilena.
No último dia de filmagem que tivemos em Temuko, a cidade virou uma praça de guerra. Manifestantes mapuches, estudantes e trabalhadores saíram às ruas para protestar contra a violência policial. Os carabineiros responderam com mais violência. Dezenas de pessoas foram presas. O comércio fechou as portas durante todo o dia.
"Vocês conheceram a sociedade mapuche em estado de catarse", nos diz Jose Ancán, sociólogo e intelectual mapuche que trabalhou no filme que estamos fazendo. "O desafio do indígena na América Latina é ser forte sem ser violento. Mas como fazer isso?", completa.
Gael Garcia Bernal, um dos atores do filme, nos diz que o que está ocorrendo frente aos nossos olhos lembra o início do movimento zapatista em Chiapas, no México, país onde nasceu. Jose Ancán, por seu lado, tenta ajudar a população mapuche de forma específica: "Nós somos uma geração que tenta resignificar a cultura mapuche", nos diz.
Uma cultura que revive. Os jovens mapuches voltam a falar a língua de seus ancestrais. Durante os 15 dias em que ficamos em Temuko, filmamos várias cenas com mapuches de idades diferentes. Como Samuel, 17 anos, que vive no campo e que, junto com seus quatro irmãos, formou um grupo de teatro que se apresenta em escolas e universidades. Em cena, Samuel sai improvisando um texto que mescla espanhol com a língua mapuche e interage com os outros atores de uma forma que nos surpreende a todos.
Mais tarde, Samuel nos apresenta a seu irmão Victor, 25 anos, diretor do grupo de teatro, pintor e escritor. Victor fala de forma pausada e reflexiva. Nos referimos a sua avó, que também participou da filmagem. Ela tem mais de cem anos, mas não se sabe sua idade ao certo. E, também, não importa. "Para os mapuches, o tempo nasce com uma pessoa e morre com ela", nos diz Victor.
Por isso, perguntar quantos anos tem exatamente a civilização mapuche não faz muito sentido. As estações, os dias e as noites são formas de contar o tempo tão importantes quanto o "we tripantu", o ano novo, comemorado na noite do solstício de inverno.
Amanhã seguimos caminho. À noite, nos encontramos com Jose Ancán, Samuel e Victor pela última vez nesta viagem. Falamos um pouco da filmagem, dos problemas que às vezes tivemos. Mas logo a conversa volta a ser política, fazendo referência ao combate que acaba de ser travado nas ruas de Temuko.
Antes de partir, Jose Ancán nos confia um texto que escreveu para a equipe nesse dia de despedida. O título é "Sobre medos e pesadelos na fronteira".
Reproduzo um trecho a seguir:
"Por trás dos rostos morenos e dos olhos achinesados que vendem verduras na feira, podam jardins e cuidam de crianças no bairro inglês, por trás dessa submissão coletiva derivada da derrota e da violência infligida, há a questão da propriedade da terra e da convivência interétnica de toda uma região. Ao primeiro sinal de revolta mapuche, lojas se fecham. Surge o medo. Um tipo peculiar de medo: irracional e disforme como sempre é o temor que se tem pelo que foi depreciado durante tantos anos. Temor de um futuro e hipotético acerto de contas".
Termino de ler o texto de Ancán. Poderia valer para tantas outras latitudes desse continente em transe.
Tempo de retomar a estrada, em direção a Valparaíso e ao deserto de Atacama.
Mari mari. Ou seja, um bom dia para todos.


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