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CARLOS HEITOR CONY
Otto Maria Carpeaux
Esse monstro ali estava, andando de mesa em mesa, fumando, esperando a reunião
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FOI COM pavor que me aproximei de Otto Maria Carpeaux,
no início dos anos 60, quando
entrei para o "Correio da Manhã",
onde fui inaugurar o que então se
chamava de "copy desk", e ele era o
principal editorialista do jornal.
Já haviam sido publicados os primeiros volumes de sua monumental
"História da Literatura Ocidental",
eu havia lido a "Cinza do Purgatório,
Origens e Fins" e "Livros na Mesa".
Considerava o seu prefácio à edição
brasileira de "Os Irmãos Karamazov" tão esclarecedor e importante
quanto o próprio texto de Dostoiévski.
Esse monstro ali estava, andando
de mesa em mesa, fumando sem parar, esperando a reunião das 18h em
que se discutiria a linha do editorial
e dos tópicos que compunham a página de opinião, a famosa página 6
do velho "Correio".
Pressionados pelo regime político
vigente naquela ocasião, pedimos
demissão mais ou menos ao mesmo
tempo. Sem jornal para escrever,
aceitávamos convites de estudantes
de diversas universidades espalhadas pelo Brasil e assim formamos
uma dupla. Durante três anos fizemos palestras em faculdades, igrejas
e clubes recreativos. Impressionante como Carpeaux conseguia, usando um mínimo de palavras, dar o seu
recado.
Ao final de cada palestra, havia debates, os estudantes faziam as perguntas, eu respondia com milhões
de palavras e não era entendido.
Carpeaux pensava um pouco, dizia
cinco, seis, dez palavras -e estava
tudo ali. Decididamente, um monstro. Nem percebiam o seu folclórico
defeito de dicção que, na intimidade,
era até escandaloso.
A verba dos estudantes era limitada, em muitas cidades dividíamos o
mesmo quarto de hotel. Nunca tive
um companheiro mais educado e
cortês.
Luz apagada, fumando o último
cigarro, eu notava que ele se concentrava antes de dormir. Rezava? Talvez. Sempre suspeitei que Carpeaux
tinha um fundo religioso, embora
criticasse todas as religiões. Depois,
somando outros detalhes de sua
personalidade, tentei esboçar uma
teoria para explicar esse tipo de concentração a que ele se entregava não
apenas na hora de dormir, mas em
momentos específicos de seu dia.
Lá no "Correio da Manhã", todos
ficávamos intrigados com a mania
que ele tinha de pegar um papel e
nele colocar nomes e números numa ordem que, aparentemente, parecia uma lista de jogo do bicho.
Feita a lista, olhava em torno para
ver se alguém o observava e discretamente jogava o papel rasgado na
cesta. Um colega deu-se ao trabalho
de apanhar os fragmentos e recompor a lista. Lá estavam, com a sua inconfundível letra gótica, pequenos
blocos de cinco ou seis letras e números, coisa esotérica. Todos os dias
fazia a mesma coisa.
Quando teve o primeiro enfarte e
ficou internado no hospital, ele pedia à dona Helena, sua mulher, que
lhe perguntasse determinadas datas
e acontecimentos, aleatoriamente,
como numa roleta. Nada respondia,
mas ficava concentrado, buscando
na memória o que lhe fora indagado.
Juntando esses elementos, comecei a perceber (e outros colegas também já tinham chegado à mesma
conclusão) de que Carpeaux possuía
algum processo mnemônico, aprendido em Cracóvia, em Viena, em Antuérpia, sei lá onde, um macete de
"scholar" com o qual, através de chaves e códigos, penetrava em todos os
campos do saber humano.
Para ele, era importante saber
quantos compassos de uma velha
canção medieval foram aproveitados por Wagner na abertura de "Os
Mestres Cantores". Como o atleta
que dedica momentos de seu dia para esquentar os músculos, ele praticava esse tipo de atletismo mental,
pronto para o que desse ou viesse.
Daí o meu espanto quando, em 1966,
produzindo o documentário "Otto
Maria Carpeaux - O Velho e o Novo",
dirigido por Maurício Gomes Leite,
fomos a seu apartamento na rua
Paula Freitas, em Copacabana.
Sua estante de livros era modesta,
igual a de um estudante em início de
curso superior. Sua discoteca era diminuta. Filho de um advogado que
tocava violino, Carpeaux preferia ler
partituras. Perguntei-lhe por quê.
Ele respondeu que lendo a pauta era
mais fácil de guardar do que ouvindo
-o que nos remete definitivamente
para o imenso universo mental que
cultivava com suas chaves enigmáticas e códigos de cabala. Um monstro.
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