São Paulo, terça-feira, 23 de novembro de 2010
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JOÃO PEREIRA COUTINHO A cúpula histórica?
LISBOA - A vida é muito injusta: logo agora que começava a relaxar em Londres, recebo ordens para regressar à base. O motivo da urgência é a cúpula da Otan, que promete paralisar a capital portuguesa. Promete, não; paralisou mesmo. Chego a Portugal; na véspera, durmo umas horas; acordo ainda de madrugada e preparo-me para um longo dia com medidas securitárias que roçam a paranoia. Se quero entrar no espaço, tenho de sofrer. Eu sofro. Às 7h, estou num certo hotel de Lisboa, cujo nome não será mencionado, onde me espera o credenciamento. Do hotel sigo, por carro oficial, para o perímetro de segurança da cúpula. Olho através do vidro e pasmo: Lisboa está deserta; uma cidade fantasmagórica porque o governo decretou "tolerância" para os trabalhadores naquele dia. Só existem policiais: um em cada esquina. Chego ao perímetro de segurança, sou revistado da cabeça aos pés. Sim, não tenho particular admiração por Barack Obama, mas nunca me passou pela cabeça matá-lo. Finalmente, entro. Finalmente, os trabalhos avançam. Finalmente, adormeço. Não apenas pelo cansaço. Mas pelo tédio. Nada do que é dito constitui novidade. A Otan tem de mudar? Tem. Não existe bloco soviético para assustar os ocidentais. E a guerra do Afeganistão mostrou que os membros da Aliança atuam fora do seu espaço tradicional, mas não o podem fazer isoladamente: é preciso "cooperar". Além disso, o 11 de Setembro fez tremer o mundo com a evidência do terrorismo global, a que se junta a ameaça balística do Irã e formas de ciberguerra que exigem respostas. Moral da história: a Otan tem um novo conceito estratégico. É, por assim dizer, um novo manual de instruções que não toca no artigo mais importante da Aliança, o artigo 5º, segundo o qual um ataque a qualquer membro da Aliança é um ataque a todos os membros. Mas existem evoluções. Primeiro, a Otan sabe que o século 21 não será dominado por ameaças militares convencionais. O terrorismo e um Irã nuclear exigem outras medidas preventivas. Como o escudo antimíssil que será construído na Europa para proteger os membros da Aliança. E que irá incluir a Rússia. Aqui, começo a despertar do meu sono profundo. Estará a Rússia disposta a isso? O presidente Medvedev diz que sim. Obama diz que sim. A Otan diz que sim. Todos os comentadores dizem que sim. Por isso a cúpula é "histórica" e, como li algures, "o fim definitivo da Guerra Fria". Eu digo que não. Ou, pelo menos, digo um "talvez": a Rússia colabora se a Otan capitular na sua ambição de estender a Aliança a países como a Geórgia ou a Ucrânia, que Moscou ainda considera seus. Da última vez que a Otan namorou abertamente a Geórgia, os tanques russos entraram pelo país adentro. Foi em 2008. É provável que, em troca da colaboração russa, a Otan desista de avançar para leste. É um recuo; há quem diga que é uma traição. Mas as dúvidas sobre o sucesso da cúpula não ficam pela ambiguidade da colaboração russa. De Moscou é preciso ir ao Afeganistão. O general David Petraeus, chefe das tropas no país, veio a Lisboa para mostrar um inusitado otimismo. Obama quer retirar até 2014; Petraeus considera que o calendário é realista e que existem progressos. Mostrou números: a diminuição da violência, o controle de certas zonas afegãs e outras proezas, como o aumento da escolaridade da população (inclusive a feminina) e de serviços básicos, como água e saneamento. Bravo. Mas a questão essencial está em saber se o estabelecimento de datas não irá contribuir para galvanizar o Taleban. Ou para que o Taleban só ataque depois da saída das tropas. Ninguém respondeu a essa questão. E a Turquia? Boa pergunta. Não tenho resposta. Foi o tema ausente da cúpula, o que não deixa de ser bizarro: a Turquia é membro da Otan, mas, nos últimos tempos e devido à forma vergonhosa como Bruxelas tem adiado qualquer conversação séria sobre a entrada da Turquia na União Europeia, os turcos têm procurado novas amizades a Oriente. Com a Síria. Com o Irã. A prudência mandaria que Obama e "sus muchachos" procurassem resgatar a Turquia para a zona de influência atlantista, antes que seja tarde. Mas, quando a festa está a ser perfeita, para que estragá-la com os amargos turcos? jpcoutinho@folha.com.br AMANHÃ NA ILUSTRADA: Marcelo Coelho Texto Anterior: Festival de Brasília aposta em cineastas estreantes na ficção Próximo Texto: Música: CCBB homenageia Noel Rosa em shows Índice | Comunicar Erros |
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