São Paulo, terça, 23 de dezembro de 1997.




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RAP
Racionais falam para a periferia da nação

PATRICIA DECIA
da Reportagem Local

O que podem querer quatro manos pretos e pobres que ganharam a adoração da periferia na zona sul de São Paulo? A resposta dos Racionais MCs está disfarçada num título de música: "Periferia é periferia (em qualquer lugar)".
A constatação carrega a idéia de que é possível sim falar, ter poder e influenciar muitos outros pretos e pobres no resto do país. E o primeiro alvo de Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e KL Jay são as favelas do Rio de Janeiro.
"Tem que chegar lá. É o mesmo povo, só em lugar diferente", diz Brown, autor de algumas das letras mais contundentes do grupo, como "O Homem na Estrada" e "Capítulo 3, Versículo 4".
Sempre sério, pouco falante e muito respeitado, Brown é uma espécie de líder, simbolizando o "orgulho negro" dos norte-americanos engajados na luta por direitos civis. Idéia que ele tenta a todo custo levar para seus manos.
No projeto de expansão dos Racionais, no entanto, não há lugar reservado para quem não conhece a vida trágica, violenta e breve que dá origem ao rap paulistano.
Falando por/para a maioria formada pelos excluídos, o grupo, que vendeu quase 200 mil cópias de "Sobrevivendo no Inferno", insiste em considerar mídia, elite e classe média desimportantes.
"Se playboy vai comprar (o CD), isso não me interessa. Mas tem uns caras que sabem o perigo que a gente oferece pelo que a gente fala e pela quantidade de pessoas que vem atrás da gente, os milhares de seguidores, de fiéis, que a gente tem", afirma Edy Rock, o outro letrista dos Racionais.
Quem mais provoca repulsa nos rappers é a televisão. "Sendo integrante dos Racionais, tendo uma visão dos problemas do meu povo, como posso falar para a Globo, que contribuiu com o regime militar, que faz programa sensacionalista? Ou para o SBT, que incentiva crianças de 3, 4 anos a dançarem a dança da garrafa?", diz KL Jay, o homem que é "a banda", o responsável pelas pick-ups, pelo som.
Fazendo 95% dos shows na periferia -em bailes e clubes sem infra-estrutura, com apenas três microfones e duas pick-ups-, morando no Capão Redondo, na Vila Gustavo, no Jaçanã, carregando caixas, montando aparelhagem, parafusando as luzes junto com os amigos, os Racionais querem continuar no lugar onde nasceram.
Mesmo no que pode ser considerado um momento de abertura -as 200 mil cópias vendidas, a realização de um show com produção, o clipe de "Diário de um Detento" prestes a entrar na MTV- os Racionais tentam manter a identidade e continuar no posto de porta-vozes de quem não tem espaço no mundo organizado.
Brown nega que depois do lançamento de "Sobrevivendo" os Racionais ficarão mais dóceis com o mundo além-periferia. "Vamos voltar para a rotina, fazer show na periferia, jogar bola, ver o Santos, ir aos lugares que a galera curte."
As letras do rap, as fotos da galera e os agradecimentos "em memória" no CD retratam o cotidiano do gueto, simbolizado pela Cohab Capão Redondo (zona sul), onde mora Brown.
"Lá onde eu moro não tem nada. Se fizer festa, morre dois, três na porta e no dia seguinte acabou. Nós estamos fechados, não estamos abertos para a América do Sul, a gente não tem Internet. A galera ouve o que se faz lá dentro: rap e pagode", afirma o MC.
Pelo menos no discurso, tudo o que eles querem é continuar a pregar para seus fiéis, como as 8.000 pessoas que foram ao ginásio do Corinthians no último sábado e enfrentaram uma maratona até as 4h para ver o grupo entrar no palco. O público, quase 100% negro, manteve-se em silêncio, aplaudindo ao final de cada canção.
No final do show, ao receber o disco de ouro por "Sobrevivendo no Inferno", Brown bradava: "Isso é pra maloqueirada que nem eu". Assim intencionava mostrar que, para os Racionais, só a "maloqueirada" importa.
Não se trata de uma apologia da vida que se leva hoje, onde a única saída é o crime, como fazem os rappers do "gangsta" nos EUA. Os Racionais querem incentivar uma ascensão social, mesmo que seja para "tirar o cara do negativo e deixá-lo ao menos no zero".
"Na periferia, o cara não consegue emprego, é preto, acha álcool, droga e um monte de cara querendo treta. E o mano sem dinheiro. Isso é a pressão. Tem que ser muito forte. Eu não quero isso para mim. Eu sou um privilegiado, por estar muito perto e muito longe disso. E é nossa obrigação passar isso para os manos", diz KL Jay.
Até agora, porém, eles não encontraram outra maneira de fazê-lo que não seus próprios exemplos pessoais e seu discurso. Essa catequização remete aos símbolos religiosos de "Sobrevivendo". Afinal de contas, segundo Edy Rock, na periferia hoje há duas saídas: o crime e a igreja.
"É a realidade da favela. É difícil sobreviver no meio dos dois, entre a cruz e a espada. O cara pensa: vou parar com tudo e ficar legal ou vou ganhar dinheiro e morrer cedo?"



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