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LIVROS/LANÇAMENTOS
"CINEMA DE INVENÇÃO"
Autor revê seu inventário de utopia
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA
"Cinema de Invenção" (ed.
Limiar) não é o mesmo
"Cinema de Invenção" (ed. Max
Limonad) de quase 15 anos atrás.
Contribuem para isso o novo
projeto gráfico, o enxugamento
do texto original e o acréscimo de
quatro capítulos que atualizam
esse clássico da bibliografia cinematográfica brasileira.
Mas o que mais altera a percepção do livro de Jairo Ferreira é
provavelmente a passagem do
tempo. Em 1986, o movimento de
cinema pós-novo (que se chamou, alternadamente, underground, udigrudi, boca-do-lixo,
experimental e de invenção) era
coisa relativamente fresca.
"Cinema de Invenção" tratava o
assunto quase como um depoimento sobre o período (basicamente, 1967/1971) e os cineastas
do período (20 têm capítulos dedicados a eles, como Ozualdo
Candeias, Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach). O autor trabalhara com vários deles, como roteirista ou assistente de direção.
Fora, ao mesmo tempo, um crítico ativo e igualmente marginal
(sua coluna do "São Paulo Shinbum" era praticamente distribuída de mão em mão) e um realizador de super-8 significativo.
O tom, como se vê, era (e nesse
aspecto continua sendo) bem diferente, por exemplo, do "Cinema
Marginal", de Fernão Ramos, outra obra de referência sobre o assunto, porém elaborada "de fora".
Em 1986, seria possível censurar
em "Cinema de Invenção" o ostensivo envolvimento com seu
objeto e o lado não menos claramente cabotino do autor (que
tem a audácia de escrever um capítulo sobre si mesmo). Podia-se
ver nisso a tentativa de fixar seu
próprio nome nessa história.
Hoje não há mais esse tipo de
percepção. Faz 30 anos, ou quase,
que esse cinema já não existe, o
que permite, em primeiro lugar,
situá-lo historicamente nos "chamados anos da utopia e da incerteza, 1967/1971", como faz o autor.
Hoje não vem mais ao caso discutir, por exemplo, a relevância
desse movimento. Não importa
se foi mais ou menos do que o cinema novo -cuja oficialização
combateu com vigor-, se fez
bem ou mal ao cinema brasileiro.
Ele existiu, ponto. Os filmes estão aí (nem todos visíveis, é verdade, mas isso é outra história), os
cineastas estão aí, alguns ativos,
outros retirados. Pode-se discutir
se um "Dois Córregos", de Carlos
Reichenbach, é coerente com o
passado do autor ou não (pessoalmente, penso que sim), ou se a atitude ainda hoje "de invenção" de
Júlio Bressane é uma espécie de
anacronismo ou não.
O fato é que esse cinema, suas
características, sua marca histórica e filiações, isso hoje tornou-se
bem mais claro, o que permite
com frequência ler "Cinema de
Invenção" como relato quase romanesco da trajetória de uma geração cujo vôo (não apenas profissional, mas pessoal) foi atrozmente marcado pelos anos de repressão política implacável.
Em outros momentos, a distância no tempo nos permite medir
com mais justiça o alcance da
contribuição crítica do autor. Trata-se de uma crítica engajada,
apaixonada, que assume como
sua a sintaxe caótica de tantos filmes da época, colagem de texto
original com citações.
Será mesmo de Jairo Ferreira ou
de alguma outra pessoa o trecho a
seguir? "O negócio é fazer filmes
péssimos. Um apanhado crítico
da face oculta do cinema nacional... Chegou a hora de massacrar
a visão europeizante que impede
o cinema nacional de ser como
deve ser."
A rigor, não importa. Estávamos em pleno AI-5, em plena censura, com os sonhos que haviam
produzido o cinema novo arrebentados. Se o programa estético
do começo dos anos 60 já não podia vigorar, quem já não podia
"fazer filme-de-cinema" fazia "filme-sobre-cinema", passava para
a tela seu desencanto e seu espanto diante do que lhe era dado viver. "Quem não pode fazer nada
avacalha", já dizia o Luz Vermelha.
Se é impossível não levar em
conta a contribuição crítica de
"Cinema de Invenção" (ainda que
se possa discutir a metodologia
anárquica ou o arbitrário de certas escolhas), que é notável, seria
injusto limitar o livro a isso. De
seu estilo-estilhaço, em que a conceituação rigorosa convive ora
com rasgos poéticos, ora com
uma retórica de manifesto, pode-se dizer (o autor mesmo o diz,
aliás) que se trata de uma didática
sem didática -em que a luz nasce da obscuridade. É um estilo desequilibrado e cintilante, na medida dos filmes de que trata.
Mais do que isso, no entanto,
"Cinema de Invenção" mostra-se
hoje como o rico inventário de
uma geração que cresceu alimentando a idéia do cinema como
utopia moderna -arte capaz de
ser a um tempo popular e erudita- e amadureceu no desencanto do AI-5 e no limiar do desespero e dos encantamentos da batalha cotidiana pela liberdade, tanto
política como pessoal.
Alguns dos nomes tratados nesse livro fizeram carreira e tornaram-se bem conhecidos dos espectadores (Reichenbach, Bressane, Sganzerla, Mojica); outros têm
carreira incerta, somem e reaparecem de tempos em tempos (Andrea Tonacci, André Luís de Oliveira, Ozualdo Candeias); há ainda os que trocaram o cinema pela
literatura (João Silvério Trevisan),
que simplesmente sumiram do
mapa (José Agripino de Paula, Júlio Calasso Jr.); ou, ainda, que trocaram o longa-metragem pela publicidade (João Callegaro, um talento enorme).
Essa diversidade de destinos é
normal, mas trata-se possivelmente do aspecto mais interessante de "Cinema de Invenção".
Se é um livro importante para conhecer o cinema gestado pelos
anos 60, à medida que o tempo
passa torna-se mais importante
para conhecer uma geração, seus
anseios, incertezas, crenças e desencantos.
Até porque nunca o pensamento cinematográfico no Brasil esteve tão próximo da carne, da imediatez do corpo, quanto naquele
momento: os filmes não eram
gestos estéticos, mas tentativas de
compreender, por imagens, o solo
ao mesmo tempo apaixonante e
transformador, mas também angustiante, injusto, repressivo e incerto em que se pisava.
Cinema de Invenção
Autor: Jairo Ferreira
Editora: Limiar
Quanto: R$ 29 (256 págs.)
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