São Paulo, sábado, 23 de dezembro de 2000

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"TIETÊ, TEJO, SENA"

Água doce, aventura paulista e modernismo



GILBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA



Clareza notável de raciocínio e exposição a de Carlos Eduardo Ornelas Berriel ao discorrer sobre a vida e obra do enigma paulista do café. Paulo Prado é escritor burguês, aristocrático e modernista, que escreveu, em 1928, o célebre "Retrato do Brasil", fundado na cobiça, na luxúria e na tristeza.
Esse pioneiro do ensaísmo (depois viriam Buarque, Freyre, Cascudo, Caio Prado) nasceu e cresceu num clima endogâmico lítero-familiar: de tio para sobrinho. O tio é Eduardo Prado, autor de "A Ilusão Americana", e o sobrinho é Paulo Prado, o empresário intelectual bacana da Semana de 22. E, no meio de tudo isso, a determinação econômica do café, a mercancia da Inglaterra antes de enriquecer o baronato de Piratininga.
O banquete do café no início do século 20. O café de Ribeirão Preto, gerando o avião de Santos Dumont em Paris, assim como o modernismo de 1922 em São Paulo, realizando a estética do cafezal. O autor leciona na Unicamp, nascido em Campos, a província goitacá fluminense do açúcar e do alambique que tanto impressionara Saint-Hilaire.
O professor Ornelas foi ousado ao pensar dialeticamente do presente para o passado, oferecendo-nos uma primorosa radiografia da visão paulistocêntrica do Brasil, em cuja gênese está a loucura de São Paulo fora dos outros Brasis. Trata-se de um estudo totalizante e revelador da dimensão de classe do modernismo brasileiro.
Preconceituoso menos com o índio que com o negro, Paulo Prado pegou pesado na defesa de uma raça paulista consolidada em meio à mixórdia racial do resto do país. O orgulho cultural paulista pressupõe o outro que é "brasileiro", junto com o trem inglês do café. Daí resulta um quadro psíquico complexo, às vezes confuso, mas com inegável sentido de realidade.
O índio Peri está morto. O Brasil é dos bandeirantes, a matriz da nacionalidade, o berço do verdadeiro capitalismo industrial perpetuando o corte do "paulista" e o resto na distância entre o "avanço" mameluco e o bode brasileiro do "atraso". A fazenda midiática "Brejão" é a City. O encontro das águas do Tietê com o Tâmisa de Londres. Para Paulo Prado, fazendeiro modernista, era natural o direito à hegemonia paulista com relação ao Brasil como um todo.
É evidente que não é preciso o parto de nascença para o papel de agente político da paulística burguesa. Da tenda bandeirante ao fazendeiro de café em Higienópolis. A República Velha pertencerá aos interesses dos paulistas.
A neurótica práxis separatista de 32 é o Paulo Prado do café investido contra Getúlio Vargas, o capiroto que continua até hoje no "pós-mortem" odiado pela paulistada de direita. A ideologia do tucanato é a dos estamentos multinacionais com o epílogo do "Retrato do Brasil".
Paulo Prado, idealizador da Semana de Arte Moderna, teve Capistrano de Abreu, o gênio da historiografia, como orientador de sua tese sobre o significado do "caminho do mar" para os paulistas. O segredo da notícia.
É possível, hoje, falar em epílogo, epílogo caricato e decadente, com inegável descenso estilístico e cultural, porque a fissura esquizóide de Paulo Prado, espécie de dr. Jekill e mr. Hyde, conforme necrológico feito por Gilberto Freyre, ainda não havia abdicado do sentimento político de emancipação nacional, tanto que profetizara o conflito do "sul contra o estrangeiro". Com o detalhe de que o sul era São Paulo, e neste sobressaía como bela virtude a insubmissão dos paulistas aos imperialismos.
Tudo isso virou ruína com o "industrialismo cosmopolita". Em São Paulo, hoje, um empresário -se fosse bem dotado como Paulo Prado- estará cuidando das "sobras" da próxima campanha política em alguma ilha argentária da América Central.



Tietê, Tejo, Sena - A Obra de Paulo Prado
    
Autor: Carlos Eduardo Ornelas Berriel
Editora: Papirus (tel. 0/xx/19/3272-4500)
Quanto: R$ 28 (248 págs.)




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