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MÚSICA
Aos 80 anos, sambista registra, pela primeira vez com sua interpretação, algumas das composições que criou
Guilherme de Brito dá voz às suas canções
ISRAEL DO VALE
ENVIADO ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO
O último elo de um certo samba
triste rende agora seu tributo a si
mesmo. Remanescente da geração de ouro dos anos 50 (que tem
em seus maiores pares Cartola e
Nelson Cavaquinho), Guilherme
de Brito estampa no semblante o
sorriso sereno da volta por cima,
enquanto prepara o segundo disco em pouco mais de dois anos.
A duas semanas dos 81 anos, o
grande parceiro de Nelson Cavaquinho em standards como "A
Flor e o Espinho" dedica-se, desde
a semana passada, ao registro, pela primeira vez em sua voz, de
parte do repertório que o conduziu ao panteão da MPB. "São músicas que todo mundo sabe que
são minhas, mas eu mesmo nunca gravei", explica.
O homem esguio que entra na
sala a passos curtos ou que se ergue com alguma dificuldade da
poltrona insinua uma fragilidade
que a voz encobre, quando canta.
O tom baixo da conversa é o avesso do som grave ao microfone.
Guilherme ouve o resultado da
primeira tentativa da tarde, para
"Folhas Secas", com base instrumental do Trio Madeira Brasil.
Termina de olhos marejados.
(Ainda neste dia, poria a voz preliminar em "Pranto de Poeta", outro dos clássicos da parceria com
Nelson Cavaquinho, em que fará
dueto com Beth Carvalho.)
"Vocês emocionaram o "seu"
Guilherme", diz, aos instrumentistas, o cantor, compositor e ora
produtor Moacyr Luz, o homem
que o trouxe de volta aos holofotes em 2000 para a gravação de
"Samba Guardado", com aval da
gravadora Lua Discos.
Retomada
Graças a esta volta, pôde assegurar algum conforto a essa altura
da vida. "Antes eu morava no
quarto andar de um prédio sem
elevador. Com o disco, pude comprar outro mais confortável",
conta, feliz, o ex-mecânico de máquinas de calcular, que contabiliza entre as maiores demonstrações de reconhecimento as duas
vezes em que esteve no Japão para
shows e para expor seus quadros,
ofício paralelo desde os 24 anos.
Acompanhado de dona Nena,
sua mulher "há mais de 60 anos",
a quem conquistou com um soneto que ainda recita, o sambista
nascido em Vila Isabel sustenta
com elegância a postura do poeta-fingidor de Fernando Pessoa.
Que dores teria experimentado
para cunhar os versos de "A Flor e
o Espinho", por exemplo, tão
lembrados entre o que há de mais
arrebatador na música popular
brasileira? "Me inspirei numa
atriz que costumava encontrar
numa leiteria na praçaTiradentes", lembra. "Ela entrava sempre
às gargalhadas, para chamar atenção." Nada de cotovelos doloridos, como se poderia supor.
Vida nos botequins
A preocupação com a voz ou a
saúde é tratada com ironia. "Minha médica é a Nena", diz, achando graça. "Ela me receita de orelhada e eu tomo." A vida nos botequins, onde compôs quase tudo
com Nelson, e o cigarro inseparável não lhe trouxeram reveses
perceptíveis.
"Comecei a fumar com cinco
anos, apanhando guimba de cigarro pelas ruas de Vila Isabel",
conta o conterrâneo de bairro de
Noel e de Martinho, que bandeou
para as fileiras da Mangueira
-ambiente de seu "Pranto de
Poeta" ("Em Mangueira, quando
morre um poeta todos choram/
Vivo tranquilo em Mangueira
porque/ Sei que alguém há de
chorar quando eu morrer").
Tão evocada, a morte não lhe
assusta. "Passei a vida tomando as
piores bebidas, porque não tinha
dinheiro, mas não tenho nada,
não sinto nada", conta o ex-frequentador assíduo do Cabaré dos
Bandidos, na praça Tiradentes,
onde cansou de pagar a Nelson
Cavaquinho as "barrigudas", como ambos chamavam as cervejas
pretas, preferidas do parceiro.
"Sou um sujeito privilegiado em
relação à morte", constata.
De tempos em tempos, diz, até
puxa conversa com ela. "Tu não
vem me buscar?", provoca. Não
que queira ir-se, justo agora que
lhe entregaram o sofá-cama dos
sonhos, onde pode se esparramar
depois do copo de vinho do almoço para o cochilo da tarde. "Com
81 anos, estou na chamada já, sou
a bola da vez", ironiza. "Estou esperando tranquilamente, sem fazer mal a ninguém", diz. "Mas
acho que não me querem por lá."
O jornalista Israel do Vale viajou a convite da gravadora Lua Discos
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