São Paulo, quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

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MARCELO COELHO

Dúvidas de Natal


"Vai ser o Papai Noel de verdade ou vai ser um de mentira?", meu filho menor me perguntou


QUANDO EU era pequeno, Papai Noel não aparecia em casa. Não era tão ruim assim: afinal, quando eu acordava no dia 25 de dezembro, o presente estava debaixo da árvore.
Acho que a tradição continua sendo essa na maioria das famílias brasileiras. Mas vejo que se tornou mais comum a prática, muito divertida aliás, de confrontar as crianças com um Papai Noel em carne e osso, em bota e barba branca, ao modo americano, trazendo todos os presentes na hora certa.
Digo "americano" porque me lembro de uma velha ilustração de Norman Rockwell, que tinha como título alguma coisa do tipo "O Segredo Revelado". Mostrava duas crianças descobrindo, entre os guardados do pai, a roupa e a barba postiça do bom velhinho.
O quadro tem a mistura de trivialidade e de surpresa típica de Rockwell -como se fosse o caso de captar, quase que fotograficamente, os americanos (classe média, anos 1950) no momento exato em que eles perdem a inocência, mas não a felicidade.
Em todo caso, o hábito de trazer um Papai Noel "ao vivo" na noite de Natal deve ter sido a regra nos Estados Unidos desde sempre. Por aqui, imagino que se generalizou há menos tempo. Hoje em dia, velhinhos podem ser contratados pelo telefone -havendo cachês diferentes para quem tem barba branca autêntica ou tem meramente barba feita de fiapos de algodão.
É desse modo que Papai Noel, o próprio, palpável e real, haverá de visitar a festa dos Coelhos, distribuindo presentes aos meus filhos e às suas primas. Penso que há nisso vantagens e desvantagens.
À medida que as crianças crescem, torna-se mais fácil perceberem a encenação. E nada pior do que um Papai Noel desmascarado pelo irmão mais velho, em pleno dia de Natal, quebrando prematuramente a crença dos menores.
Todos sabem, de qualquer modo, que há um Papai Noel verdadeiro e um sem-número de outros -zanzando pela cidade ou refestelados num saguão de shopping center.
"Vai ser o de verdade ou vai ser um de mentira?", perguntou-me outro dia meu filho menor, na expectativa da festa familiar. Embatuquei, prevendo que ele talvez já esteja em idade de perceber o óbvio. Fiquei pensando se não seria melhor o velho esquema, do presente deixado na árvore, sem sombra de Papai Noel à vista, sem perigo de decepção.
A alternativa não é tão pueril quanto parece. No fundo, estamos às voltas com dois tipos de crença, talvez até de religião.
O Papai Noel da minha infância existia, mas em total invisibilidade. Situava-se na ordem do mistério, e o presente embaixo da árvore funcionava como um dom silencioso, uma versão infantil da graça religiosa.
Já o Papai Noel "de verdade", que chega em casa trazendo brinquedos num saco de pano, não pressupõe o mistério; existe no plano do prodígio, da mágica, do milagre talvez. Há aqui duas culturas em confronto. Na primeira, a ênfase é sobretudo verbal. Você acredita no que dizem e não precisa de comprovação nos fatos.
No outro caso, o visual prevalece: eis o Papai Noel, eis o seu presente; como duvidar de sua existência? Num caso, estamos no plano da lenda; no outro, no mundo dos efeitos especiais.
Ocorre um pouco como no cinema. Determinados filmes apostam mais na sugestão e menos no que apresentam ao espectador. O comum, hoje, é procurarmos a perfeição técnica em cenas e personagens que sabemos, desde o início, meras ilusões.
Quanto maior o "realismo" da encenação, maior o risco de que a mentira seja descoberta. Se a aposta é no invisível, a realidade não tem como competir. Verdade que o invisível não é tão divertido. Em todo caso, minha tendência seria aprovar antes o sistema da minha infância do que o atual. Só que, nessa especulação, eu fui me esquecendo de uma coisa importante.
Um deus invisível, sem dúvida, é pressuposto de toda religião. Mas um deus que nunca veio à Terra, que nunca assume o peso, a gravidade, o cansaço da carne humana, tende a ser mais judaico do que cristão.
Como o Papai Noel palpável, "americano", que meus filhos querem ver de verdade na festa de Natal, o Deus dos cristãos não se contentou com a invisibilidade e o mistério: encarnou-se; consta até que usava barba. Não foi recebido otimamente, é fato, por todo mundo; mas bem que ele tentou.

coelhofsp@uol.com.br


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