São Paulo, quarta-feira, 24 de janeiro de 2001

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MARCELO COELHO

São Paulo é melhor quando vista de longe

É geral a sensação de que, depois da passagem de Celso Pitta pela prefeitura, a cidade de São Paulo ficou mais feia, violenta e degradada do que nunca. Marta Suplicy tem muito a fazer para recuperar a paisagem urbana, revitalizar o centro, "resgatar", como se diz, o patrimônio histórico da cidade.
Até aí, estamos todos de acordo. Mas também é um fato que São Paulo nunca foi uma cidade bonita e que, quando se tomam iniciativas como as de melhorar a região da Luz, por exemplo, trata-se mais de "reinventá-la", de construir um novo cenário, de atribuir novos usos ao lugar, de alterar o perfil social de seus frequentadores, do que simplesmente de restaurar o que havia antes.
Seja devido à degradação recente, seja devido a um impulso de imaginação museológica, vai ficando em moda gostar do passado de São Paulo; exposições e livros de fotos antigas da cidade fazem bastante sucesso.
Fiquei folheando o livro de João Emilio Gerodetti e Carlos Cornejo, "Lembranças de São Paulo", que reproduz um grande número de antigos cartões-postais da cidade. Há desde um panorama de São Paulo, só com casinhas cor-de-rosa, impresso em 1897, até uma dura vista aérea da década de 50, com a multidão de prédios que se conhece.
É estranho o encantamento que produzem essas fotos. Uma rua comercial apinhada, por volta de 1930, com sua fileira de toldos protegendo a fachada das lojas, dá uma espécie de aperto no coração. Não se trata de simples nostalgia, claro.
Uma coisa seria ter saudade daquele lugar, sentir que o perdemos; mas nem mesmo essa sensação de perda existe. Não há, para os habitantes atuais da cidade, nem sequer a possibilidade de uma nostalgia; só se pode "sentir falta de sentir falta" do passado.
Não é que uma rua ou uma praça tenha mudado de aspecto ao longo dos anos. As fotos do Tietê e do vale do Anhangabaú por volta de 1910 são simplesmente irreconhecíveis.
Como morador da cidade, tenho muitas vezes a impressão de que certos lugares não existem, são só nomes sem conteúdo. O rio Tamanduateí, por exemplo; ou o parque Dom Pedro, ou a praça das Bandeiras. Tudo é apenas lugar onde passam carros e ônibus; não tem como ser visto.
Fica, aliás, bem claro, no livro, como a paisagem de São Paulo foi destruída pelos automóveis; o vale do Anhangabaú, que numa imagem de 1920 era um jardim, vai sendo pouco a pouco invadido pelos carros; num cartão-postal de 1950, é pouco mais que um estacionamento.
Algumas fotos mais recentes talvez possam levar à reminiscência autobiográfica. Anúncios luminosos do refrigerante Crush, do remédio Fontol ou da emulsão de Scott lançam, das páginas do livro, seus apelos à memória.
Mas o que fascina nas imagens antigas de São Paulo é sobretudo o fato de que, para a maioria de nós, nada mais faz sentido. O lugar onde hoje fica o Masp aparece num cartão-postal de 1945 não como documento do passado, mas como um projeto futurista, como algo que nunca existiu.
O prédio do Mappin, que ainda existe na praça Ramos de Azevedo, surge novo em folha numa foto de 1939; temos a sensação de que nunca foi construído, já que nossa experiência real, passando pelo lugar, é a de que não há nada digno de nota, nada a ser visto ali.
A beleza das antigas fotos de São Paulo torna-se quase dolorosa assim porque sabemos que a cidade nunca foi bonita. Prédios na verdade bem bestalhões, como o edifício Martinelli ou o do Banespa, parecem, entretanto, querer dizer alguma coisa nesses cartões-postais.
É que cada imagem de São Paulo foi captada no instante mais agudo de uma cidade sempre em crescimento; toda foto parece registrar "o auge" de um progresso urbano que, sabemos, era destrutivo, mas ali se apresenta com triunfalismo.
O que perturba, então, nas fotos antigas de São Paulo é que cada uma está como que na ponta do tempo, na beira de um precipício histórico; em 1920 ou em 1950, uma avenida, uma praça, um edifício são surpreendidos pelo fotógrafo na mesma exasperação de ir adiante, no rumo do futuro, do progresso.
Fixadas num álbum, numa moldura de exposição, essas imagens da cidade parecem, entretanto, aquietar-se numa arquitetura branca, reta e vazia, destituída de pulsação, sequestrada pelo tempo. As ruas e prédios ficam nítidos como numa prancheta. O ar parece rarefeito; o que sempre houve de desumano na cidade se torna apenas impessoal; a confusão urbana deslinda-se em preto-e-branco, e a cidade, que oprime seus habitantes, pode então finalmente se transformar em objeto de nossa visão.
Uma visão sem sentimentalismo, sem passadismo e também sem o desespero, sem o desconforto que temos ao habitar São Paulo. Podemos ver a cidade não no seu passado (que não reconhecemos), mas de longe, que sem dúvida é o seu melhor ponto de observação. Ou talvez possamos vê-la como uma ficção, como algo irreal: como uma promessa de civilidade ainda a construir.


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