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NELSON ASCHER
A cidade universal
Poucas gerações atrás as
pessoas viviam preponderantemente no campo. Hoje a
maioria vive em cidades. Estas
atraem gente não apenas devido
às oportunidades de trabalho que
oferecem, mas igualmente graças
ao fato de que são, de certa forma,
concentrações gigantescas de
"hardware", centros de informação, comunicação, transportes. A
cidade é uma teia ou um emaranhado complexo e denso de inter-relações. Por isso, a vida urbana é
mais densa e complexa, ao menos
até o momento em que seus empecilhos eclipsem as vantagens.
São Paulo não é exceção. Pode-se achar de tudo, ou quase, aqui.
O primeiro shopping center local
foi construído no final dos anos
60. Hoje há dezenas nas mais diversas regiões e bairros. Nos anos
80, havia três ou quatro lugares
para jantar depois da meia-noite,
e comida em domicílio era uma
raridade. Paris, por exemplo, dispõe de duas farmácias abertas
24h, o que não a torna convidativa para hipocondríacos de plantão. Bom, só na avenida Angélica
se acha uma meia dúzia. E os fumantes parisienses (não exatamente uma espécie em extinção)
têm de comprar seus cigarros antes das 2h.
Recuando no tempo, chegamos
a uma época, nem tão remota, na
qual as paulistanas elegantes faziam suas compras nas butiques
do Rio de Janeiro, e era lá também que se encontravam os melhores restaurantes (pois em São
Paulo existiam apenas churrascarias e cantinas), livrarias, teatros
e os primeiros "cinemas de arte".
O Rio manteve, em termos de civilização, sua primazia por cerca
de 20 anos após deixar de ser a capital federal. Aliás, uma das grandes tragédias nacionais (que, infelizmente, tampouco foi narrada
em romances ou filmes, como mereceria) é sua decadência. Perdeu-se uma metrópole topográfica, arquitetural e historicamente
fascinante que conseguira, ademais, desenvolver sua "joie de vivre" peculiar.
São Paulo não é nem será jamais o Rio de outrora. Nossa desmemória característica (associada a uma população relativamente jovem) nos induz, contudo,
a esquecermos quanto a cidade
mudou desde os anos 60. No início da ditadura militar, ela era, a
rigor, uma aldeia hipertrofiada,
provinciana e tranqüila. Crianças brincavam com marrecos na
praça da República, o bonde parava para que os pedestres atravessassem a avenida São João, as
avenidas Rebouças e Brasil eram
alamedas arborizadas e a Cidade
Universitária, uma várzea lamacenta com alguns barracões nos
confins do universo conhecido. Se,
por um lado, era possível passear,
sem medo, em toda parte e a
qualquer hora, por outro, a revolução sexual chegou aqui dez
anos depois de ter alcançado o
Rio cosmopolita, onde hambúrgueres, cachorros-quentes e lanchonetes em geral também se popularizaram antes.
O crescimento rápido de São
Paulo não permitiu que seus habitantes gerassem algum tipo coerente de identidade. O paulistano, como tal, inexiste. Enquanto o
país era governado do Rio, mineiros, gaúchos ou maranhenses se
mudavam para lá e se convertiam imediatamente em cariocas.
Ser paulistano, porém, o que é? É
tão somente morar na cidade.
Culturalmente (embora de modo
infinitamente mais atenuado do
que os europeus), amazonenses e
paranaenses, pernambucanos e
baianos prezam suas respectivas
especificidades. Os paulistas em
geral e os paulistanos em particular, muito menos. Eles se sentem,
sobretudo, brasileiros. Daí que,
quando, em suas novelas, a Rede
Globo -com meio século de atraso- os retrata arrastando um sotaque italianizado, tal tentativa
de tornar facilmente reconhecível
uma população heterogênea se
revele sempre ridícula.
Uma de suas minisséries mais
inteligentes, "Avenida Paulista"
(1982), não caiu nessa caricatura.
Até certo ponto, porém, sua trama contrapunha paulistas originais ("quatrocentões" ou algo semelhante) aos "recém-chegados".
Não é assim que São Paulo funciona. Esta cidade não é a Nova
York dos conflitos entre "nativos"
e imigrantes irlandeses que Martin Scorsese descreveu em "Gangues de Nova York" (2002). Em
outras palavras: os requisitos dramáticos da ação levaram a melhor sobre uma realidade empiricamente verificável.
Pensando bem, se há um enredo
que se aplicaria nesta urbe, rendendo resultados surpreendentes,
seria o de "Um Dia de Fúria"
("Falling Down", 1993), filme no
qual William Foster (Michael
Douglas), um executivo desempregado, quer visitar o filho no
dia do aniversário. O garoto vive
com a mãe, da qual Foster está separado, no extremo oposto de Los
Angeles, e, preso num congestionamento matinal, o protagonista
abandona o carro e se dirige a pé
rumo à casa da ex-mulher. Seu
trajeto acidentado descortina
uma megalópole tão variada
quanto o próprio planeta. Um sujeito que caminhasse num dia comum, digamos, do Jabaquara ao
Alto de Pinheiros não se depararia com menos diversidade.
Um dos prazeres que São Paulo
oferece é precisamente o de acompanhar sua mutabilidade. Quem
passa alguns meses fora retorna a
um lugar diferente e, no entanto,
absolutamente familiar. O estranho seria voltar a uma paisagem
urbana inalterada. Ninguém se
banha duas vezes no mesmo Tietê, e isso não apenas porque quem
não fosse um mutante, dificilmente sobreviveria ao primeiro
mergulho. Conviver com suas metamorfoses aceleradas não é para
principiantes e aqueles que venham de localidades pacatas não
se adaptam com facilidade, nem
necessariamente as apreciam.
São Paulo é, porém, o que o Brasil
tem de mais universal e seus cidadãos, tipicamente, se identificam
não tanto com a cidade, como
com seus bairros e, ao mesmo
tempo, sem contradição, com o
país inteiro.
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