São Paulo, segunda-feira, 24 de janeiro de 2005

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NELSON ASCHER

A cidade universal

Poucas gerações atrás as pessoas viviam preponderantemente no campo. Hoje a maioria vive em cidades. Estas atraem gente não apenas devido às oportunidades de trabalho que oferecem, mas igualmente graças ao fato de que são, de certa forma, concentrações gigantescas de "hardware", centros de informação, comunicação, transportes. A cidade é uma teia ou um emaranhado complexo e denso de inter-relações. Por isso, a vida urbana é mais densa e complexa, ao menos até o momento em que seus empecilhos eclipsem as vantagens.
São Paulo não é exceção. Pode-se achar de tudo, ou quase, aqui. O primeiro shopping center local foi construído no final dos anos 60. Hoje há dezenas nas mais diversas regiões e bairros. Nos anos 80, havia três ou quatro lugares para jantar depois da meia-noite, e comida em domicílio era uma raridade. Paris, por exemplo, dispõe de duas farmácias abertas 24h, o que não a torna convidativa para hipocondríacos de plantão. Bom, só na avenida Angélica se acha uma meia dúzia. E os fumantes parisienses (não exatamente uma espécie em extinção) têm de comprar seus cigarros antes das 2h.
Recuando no tempo, chegamos a uma época, nem tão remota, na qual as paulistanas elegantes faziam suas compras nas butiques do Rio de Janeiro, e era lá também que se encontravam os melhores restaurantes (pois em São Paulo existiam apenas churrascarias e cantinas), livrarias, teatros e os primeiros "cinemas de arte". O Rio manteve, em termos de civilização, sua primazia por cerca de 20 anos após deixar de ser a capital federal. Aliás, uma das grandes tragédias nacionais (que, infelizmente, tampouco foi narrada em romances ou filmes, como mereceria) é sua decadência. Perdeu-se uma metrópole topográfica, arquitetural e historicamente fascinante que conseguira, ademais, desenvolver sua "joie de vivre" peculiar.
São Paulo não é nem será jamais o Rio de outrora. Nossa desmemória característica (associada a uma população relativamente jovem) nos induz, contudo, a esquecermos quanto a cidade mudou desde os anos 60. No início da ditadura militar, ela era, a rigor, uma aldeia hipertrofiada, provinciana e tranqüila. Crianças brincavam com marrecos na praça da República, o bonde parava para que os pedestres atravessassem a avenida São João, as avenidas Rebouças e Brasil eram alamedas arborizadas e a Cidade Universitária, uma várzea lamacenta com alguns barracões nos confins do universo conhecido. Se, por um lado, era possível passear, sem medo, em toda parte e a qualquer hora, por outro, a revolução sexual chegou aqui dez anos depois de ter alcançado o Rio cosmopolita, onde hambúrgueres, cachorros-quentes e lanchonetes em geral também se popularizaram antes.
O crescimento rápido de São Paulo não permitiu que seus habitantes gerassem algum tipo coerente de identidade. O paulistano, como tal, inexiste. Enquanto o país era governado do Rio, mineiros, gaúchos ou maranhenses se mudavam para lá e se convertiam imediatamente em cariocas. Ser paulistano, porém, o que é? É tão somente morar na cidade. Culturalmente (embora de modo infinitamente mais atenuado do que os europeus), amazonenses e paranaenses, pernambucanos e baianos prezam suas respectivas especificidades. Os paulistas em geral e os paulistanos em particular, muito menos. Eles se sentem, sobretudo, brasileiros. Daí que, quando, em suas novelas, a Rede Globo -com meio século de atraso- os retrata arrastando um sotaque italianizado, tal tentativa de tornar facilmente reconhecível uma população heterogênea se revele sempre ridícula.
Uma de suas minisséries mais inteligentes, "Avenida Paulista" (1982), não caiu nessa caricatura. Até certo ponto, porém, sua trama contrapunha paulistas originais ("quatrocentões" ou algo semelhante) aos "recém-chegados". Não é assim que São Paulo funciona. Esta cidade não é a Nova York dos conflitos entre "nativos" e imigrantes irlandeses que Martin Scorsese descreveu em "Gangues de Nova York" (2002). Em outras palavras: os requisitos dramáticos da ação levaram a melhor sobre uma realidade empiricamente verificável.
Pensando bem, se há um enredo que se aplicaria nesta urbe, rendendo resultados surpreendentes, seria o de "Um Dia de Fúria" ("Falling Down", 1993), filme no qual William Foster (Michael Douglas), um executivo desempregado, quer visitar o filho no dia do aniversário. O garoto vive com a mãe, da qual Foster está separado, no extremo oposto de Los Angeles, e, preso num congestionamento matinal, o protagonista abandona o carro e se dirige a pé rumo à casa da ex-mulher. Seu trajeto acidentado descortina uma megalópole tão variada quanto o próprio planeta. Um sujeito que caminhasse num dia comum, digamos, do Jabaquara ao Alto de Pinheiros não se depararia com menos diversidade.
Um dos prazeres que São Paulo oferece é precisamente o de acompanhar sua mutabilidade. Quem passa alguns meses fora retorna a um lugar diferente e, no entanto, absolutamente familiar. O estranho seria voltar a uma paisagem urbana inalterada. Ninguém se banha duas vezes no mesmo Tietê, e isso não apenas porque quem não fosse um mutante, dificilmente sobreviveria ao primeiro mergulho. Conviver com suas metamorfoses aceleradas não é para principiantes e aqueles que venham de localidades pacatas não se adaptam com facilidade, nem necessariamente as apreciam. São Paulo é, porém, o que o Brasil tem de mais universal e seus cidadãos, tipicamente, se identificam não tanto com a cidade, como com seus bairros e, ao mesmo tempo, sem contradição, com o país inteiro.


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