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CONTARDO CALLIGARIS
"O Signo da Cidade"
Os filmes urbanos plurais, em geral, são amargos; esse não é o caso do filme de Riccelli
NUMA NOITE da semana passada, estive na festa de aniversário de um amigo que mora
ao norte da avenida Paulista.
Eu moro não muito longe dele,
mas ao sul da Paulista. A paisagem
urbana visível pelas janelas de nossos apartamentos é, portanto, diferente -salvo pela silhueta dos prédios mais altos e pelas antenas da
Paulista, que ambos avistamos, embora de lados opostos. Naquela noite, aliás, a nova antena digital da Globo brilhava esverdeada.
Gosto das antenas da Paulista. Sua
luz, que todos podemos enxergar
contra o céu escuro, funciona um
pouco, para mim (sobretudo num
fim de festa, quando é hora de a gente se separar), como o sinal de que,
por mais que estejamos "perdidos
na noite suja", a cidade não é apenas
uma expressão geográfica. As antenas da Paulista, em suma, não são
nenhum Cristo Redentor, mas são
alguma coisa: um símbolo incerto,
mas por isso mesmo talvez mais
adequado à realidade urbana.
Justamente, há uma antena da
Paulista no filme que estréia amanhã, "O Signo da Cidade", de Carlos
Alberto Riccelli, com roteiro de Bruna Lombardi e do próprio Riccelli. É,
por assim dizer, uma antena que fala
e também escuta: no filme, Teca
(Bruna Lombardi) é a astróloga de
um programa de rádio. Noite adentro, ela recebe as chamadas dos que
não agüentam mais a dureza da vida,
seu próprio silêncio e a surdez dos
outros. E Teca responde como pode,
com ou sem a ajuda dos astros.
O roteiro, então, é plural, composto de uma variedade de histórias
(como alguns dos meus filmes preferidos, "Magnólia" ou "Crash - No
Limite"), mas, graças à figura central
de Teca, as diferentes histórias tocam, por assim dizer, uma música só
-o filme é uma pequena sinfonia da
cidade.
Certo, as vidas que se cruzam podem ser cruéis e solitárias. Há a moça deitada no sangue de um aborto
que ela produziu à força, num hotel
miserável. Há o moço que se perde
pelas ruas porque sua mãe se suicidou. Há o agente de viagem picareta,
o assaltante-segurança, o pai de Teca que está morrendo no hospital, o
travesti que esbarra na violência da
noite, uma sem-teto que dá à luz
num estacionamento e por aí vai.
Essa turma de vira-latas somos
nós: paradoxalmente próximos e separados, cruzando a cada dia com
centenas de destinos sobre os quais,
claro, não queremos saber nada
-nem o óbvio, ou seja, que eles nunca nos são completamente estrangeiros.
Na aldeia, passando pela fazendola do vizinho, posso me preocupar
com ele: não vi sua luz acesa ontem,
será que ele está bem? Mas, para
conseguir atravessar o viaduto do
Chá, preciso esquecer a humanidade que compartilho com os outros,
preciso que a vida deles não me interesse, preciso fechar um pouco os
ouvidos e os olhos. É a regra da vida
urbana. Por isso, os filmes urbanos
plurais, em geral, são amargos.
Esse não é o caso do filme de Riccelli. Talvez seja por seu jeito tocante de filmar a cidade, que, embora familiar e reconhecível, torna-se "encantada" e, embora brutal, torna-se
estranhamente amável. Ou talvez
seja pela qualidade do próprio roteiro ou pela bonita atuação de Bruna
Lombardi (e de todos os atores, de
fato). De qualquer forma, o fato é
que "O Signo da Cidade" consegue
um pequeno milagre: é um filme sobre a selvageria da convivência urbana, mas terno e comovedor.
Assisti ao filme pela primeira vez
na Mostra de Cinema de São Paulo e
voltei a pé do shopping Frei Caneca
até os Jardins, feliz, por uma vez, de
estar sem carro. Olhava para os paulistanos que eu cruzava como numa
brincadeira que fazia quando criança: caminhava pelas ruas no fim do
dia, olhava para as janelas, sonhava e
tentava me identificar com as vidas
que ali aconteciam, tão próximas da
minha e tão diferentes dela.
Entro em férias e volto a escrever
depois do Carnaval, em 14 de fevereiro. Graças ao "Signo da Cidade",
saio de São Paulo com nostalgia.
Por coincidência, o filme estréia
em 25 de janeiro. É o aniversário da
cidade. A produção anunciou que,
por isso mesmo, amanhã, dia 25 de
janeiro, o ingresso custará só R$ 1.
Não perca: não posso imaginar melhor maneira de celebrar o aniversário de São Paulo.
Eu sei, em geral, tendemos a pensar que não há nada para festejar.
Pois bem, o filme nos ajuda a acreditar que talvez não seja bem assim,
que talvez ainda seja possível apostar na convivência de tantos humanos nestes poucos quilômetros quadrados.
ccalligari@uol.com.br
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