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Crítica/"O Reino do Amanhã"
Com humor niilista, Ballard retrata vilania do consumismo
Romance registra nascimento de fascismo em cidade dominada por shopping center
SANTIAGO NAZARIAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
O apocalipse está para a
literatura atual assim
como o mal do século
está para a literatura romântica. Se para os autores do século
19 o indivíduo é quem era cerceado e combatido pelo resto
do mundo, chegamos agora à
constatação de que são os desejos individuais que estão pouco
a pouco destruindo o mundo
-gerando uma crise econômica, climática e ideológica.
James Graham Ballard entende o apocalipse como ninguém. Nascido em Xangai em
1930, filho de pais ingleses, foi
prisioneiro durante a adolescência na Segunda Guerra
Mundial, experiência que narrou no romance autobiográfico
"Império do Sol" (levado às telas em 1987 por Steven Spielberg).
Também passou por tragédias pessoais, como a morte
por pneumonia de sua primeira
mulher, que o deixou com três
filhos pequenos, e, atualmente,
luta contra um avançado câncer de próstata.
Com tudo isso, é especialmente curioso notar sua perspicácia em localizar o tédio e o
consumismo como os principais vilões da atualidade, deixando de lado confrontos militares e tratando de forma épica,
com ares de ficção científica,
dramas burgueses subjetivos.
"O Reino do Amanhã" -lançado originalmente em 2006, e
que sai agora no Brasil pela
Companhia das Letras, com
tradução do colunista da Folha
José Geraldo Couto- foca uma
cidade nos arredores de Londres dominada por um shopping: o Metro-Centre.
Richard
Pearson é um publicitário recém-demitido que chega a esse
cenário para enterrar o pai, vítima de um possível ataque terrorista. Afastado há muitos
anos, Pearson busca respostas
sobre o pai no apartamento
que herdou. Aos poucos, vai
percebendo a aura de violência
da cidadezinha, onde fascistas
e consumistas, apocalípticos e
integrados vão fermentando
uma guerra crescente, encubada pelo Metro-Centre.
"Para a maioria das pessoas a
vida é confortável hoje, e temos
tempo livre para ser irracionais
se quisermos. Somos como
crianças entediadas. Estivemos
de férias por um tempo longo
demais, e ganhamos muitos
presentes. Qualquer pessoa
que tenha tido filhos sabe que o
maior perigo é o tédio. O tédio
e um deleite secreto com a própria maldade. Juntos eles podem incitar a uma notável inventividade", diz o psiquiatra
do livro, diagnosticando uma
"loucura voluntária" na sociedade local.
Depois que drogas,
sexo e guerra deixaram de surtir efeito, a loucura vem trazer
a energia que falta ao homem.
Tom profético
A ruína do consumismo e o
fato de o protagonista ser um
publicitário desempregado dão
um saboroso tom profético ao
livro. O nacionalismo agressivo
e as brigas de torcida são colocadas lado a lado como uma
resposta fisiológica à confortável apatia mantida durante décadas de capitalismo selvagem.
Mas, ainda que seja atual, não
é exatamente novidade. Especialista em ficção científica desde os anos 60, Ballard já fez isso
antes. E talvez tenha feito melhor em "Terroristas do Milênio" (lançado aqui em 2005,
também pela Companhia das
Letras), em que o mesmo manifesto e a análise sociológica estão presentes no texto de maneira menos didática. Ainda assim, a fina ironia e o humor niilista do autor suavizam o caráter panfletário do livro. E, como diria o protagonista: "Violência? Que homem não gosta?".
SANTIAGO NAZARIAN é escritor, autor de "Feriado de Mim Mesmo" (Planeta), entre outros.
O REINO DO AMANHÃ
Autor: J.G. Ballard
Editora: Companhia das Letras
Tradução: José Geraldo Couto
Quanto: R$ 54 (368 págs.)
Avaliação: bom
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