São Paulo, sábado, 24 de janeiro de 2009

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Crítica/"O Reino do Amanhã"

Com humor niilista, Ballard retrata vilania do consumismo

Romance registra nascimento de fascismo em cidade dominada por shopping center

SANTIAGO NAZARIAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O apocalipse está para a literatura atual assim como o mal do século está para a literatura romântica. Se para os autores do século 19 o indivíduo é quem era cerceado e combatido pelo resto do mundo, chegamos agora à constatação de que são os desejos individuais que estão pouco a pouco destruindo o mundo -gerando uma crise econômica, climática e ideológica. James Graham Ballard entende o apocalipse como ninguém. Nascido em Xangai em 1930, filho de pais ingleses, foi prisioneiro durante a adolescência na Segunda Guerra Mundial, experiência que narrou no romance autobiográfico "Império do Sol" (levado às telas em 1987 por Steven Spielberg).
Também passou por tragédias pessoais, como a morte por pneumonia de sua primeira mulher, que o deixou com três filhos pequenos, e, atualmente, luta contra um avançado câncer de próstata.
Com tudo isso, é especialmente curioso notar sua perspicácia em localizar o tédio e o consumismo como os principais vilões da atualidade, deixando de lado confrontos militares e tratando de forma épica, com ares de ficção científica, dramas burgueses subjetivos. "O Reino do Amanhã" -lançado originalmente em 2006, e que sai agora no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução do colunista da Folha José Geraldo Couto- foca uma cidade nos arredores de Londres dominada por um shopping: o Metro-Centre.
Richard Pearson é um publicitário recém-demitido que chega a esse cenário para enterrar o pai, vítima de um possível ataque terrorista. Afastado há muitos anos, Pearson busca respostas sobre o pai no apartamento que herdou. Aos poucos, vai percebendo a aura de violência da cidadezinha, onde fascistas e consumistas, apocalípticos e integrados vão fermentando uma guerra crescente, encubada pelo Metro-Centre.
"Para a maioria das pessoas a vida é confortável hoje, e temos tempo livre para ser irracionais se quisermos. Somos como crianças entediadas. Estivemos de férias por um tempo longo demais, e ganhamos muitos presentes. Qualquer pessoa que tenha tido filhos sabe que o maior perigo é o tédio. O tédio e um deleite secreto com a própria maldade. Juntos eles podem incitar a uma notável inventividade", diz o psiquiatra do livro, diagnosticando uma "loucura voluntária" na sociedade local.
Depois que drogas, sexo e guerra deixaram de surtir efeito, a loucura vem trazer a energia que falta ao homem.

Tom profético
A ruína do consumismo e o fato de o protagonista ser um publicitário desempregado dão um saboroso tom profético ao livro. O nacionalismo agressivo e as brigas de torcida são colocadas lado a lado como uma resposta fisiológica à confortável apatia mantida durante décadas de capitalismo selvagem.
Mas, ainda que seja atual, não é exatamente novidade. Especialista em ficção científica desde os anos 60, Ballard já fez isso antes. E talvez tenha feito melhor em "Terroristas do Milênio" (lançado aqui em 2005, também pela Companhia das Letras), em que o mesmo manifesto e a análise sociológica estão presentes no texto de maneira menos didática. Ainda assim, a fina ironia e o humor niilista do autor suavizam o caráter panfletário do livro. E, como diria o protagonista: "Violência? Que homem não gosta?".

SANTIAGO NAZARIAN é escritor, autor de "Feriado de Mim Mesmo" (Planeta), entre outros.


O REINO DO AMANHÃ
Autor: J.G. Ballard
Editora: Companhia das Letras
Tradução: José Geraldo Couto
Quanto: R$ 54 (368 págs.)
Avaliação: bom



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