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A atriz Isabelle Huppert assume a voz dilacerada que a suicida britânica Sarah Kane criou na peça "4.48 Psychose", sob a direção do francês Claude Régy
Sem saída
France Presse
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A atriz Isabelle Huppert, em cena de "Deux", filme do alemão Werner Schroeter |
SALINO BRIGITTE
DO "LE MONDE"
Imóvel no centro do palco na
maior parte do tempo, a atriz
francesa Isabelle Huppert vive um
personagem que narra as angústias de estar à beira do suicídio. A
valorização do texto é a marca
dessa encenação de "4.48 Psychose", de Sarah Kane (1971-1999),
pelo diretor Claude Régy, 78.
Esse último trabalho da autora
britânica, que se enforcou aos 28
anos, arrebatou Huppert. "Foi na
impossibilidade que eu tinha em
dar nome ao que senti ao ler a peça que encontrei a fonte de meu
desejo de representá-la", disse ela
em entrevista ao "Le Monde".
A peça estréia hoje para convidados no Sesc Consolação, em
São Paulo, e fica em cartaz até
quinta para o público em geral. Os
ingressos estão esgotados.
Pergunta - Em 2000, você foi Medéia, de Eurípides, em Avignon.
Naquela época você observou que,
em grego, a mesma palavra significa infanticídio e suicídio. Logo depois de Medéia, você atuou em
"4.48 Psychose", de Sarah Kane,
uma peça obcecada pelo suicídio.
Isabelle Huppert - É verdade,
passei do infanticídio ao suicídio.
Sarah Kane não tinha filho, mas
matou a criança que existia dentro dela. Ela disse que tinha a
doença de se tornar adulta. Ao final da peça, disse também: "Não
sinto nenhum desejo de morte.
Nenhum suicida o tem". O que
preocupa é a idéia de reproduzir o
discurso de alguém que fala de se
suicidar e que terminou por fazer
isso -se bem que não se fale apenas em suicídio em "4.48 Psychose". Kane conta de maneira precisa o que viveu pouco tempo antes
de escrever.
Pergunta - Como livrar-se do romantismo nocivo em torno da morte de Sarah Kane?
Huppert - Sempre se pode ser
sentimental, nessas circunstâncias. Ao mesmo tempo, porém,
tudo nos escritos de Sarah Kane
nos afasta disso. A verdadeira
subversão não está tanto naquilo
que ela conta, mas em como o faz.
Sua forma é muito poderosa,
muito poética. Ela procura a sensação por meio da sonoridade,
dos ritmos, das cadências e dos silêncios, muitos silêncios. Mais do
que uma linguagem do sentimento, é a linguagem do sentido. Ela
não nos incita à fantasia romântica. Sua peça também é uma linguagem de vida. Eu não diria que
"4.48 Psychose" é um hino à vida,
mas possui muita energia. Sarah
Kane é alguém que morre em pé.
Pergunta - Foi você quem procurou Claude Régy com o texto?
Huppert - Claude Régy me disse
que tinha vontade de montar a
peça comigo. Então a li. Não sei se
se pensa em algo preciso quando
se lê um texto como aquele. Foi na
impossibilidade que eu tinha em
dar nome ao que senti ao ler a peça que encontrei a fonte de meu
desejo de representá-la.
Pergunta - Você é acompanhada
pelo ator Gérard Watkins. Como estão divididos os papéis?
Huppert - Claude Régy quis que
fôssemos dois. "4.48 Psychose"
não é um monólogo, mas uma
voz dilacerada. Em sua primeira
encenação, no Royal Court, havia
quatro atores. A peça pode ser
montada com três ou com um só.
Pode-se imaginar que a mulher
que fala o faz consigo mesma, e
que a voz de Watkins surge em
seu espírito como uma voz mediadora entre ela e o mundo. O fato de sermos dois também remete
a peça a seu aspecto mais simples,
que é uma história de amor.
Pergunta - É preciso recorrer a
outra coisa senão o saber fazer
quando se representa Sarah Kane?
Huppert - O que pensamos saber
fazer não influi em nada, sobretudo com Claude Régy. Ele não convoca o ator que vive dentro do
ator. Ele chama a pessoa que vive
no ator, o que supõe que este terá
que livrar-se de seu saber fazer e
substituí-lo pelo saber ser. No teatro, vivemos na convenção do lugar, do tempo e do espaço, mas fazemos de conta que isso tudo não
existe. Régy não faz nada para esquecer que existe, traz o ator de
volta a esse princípio da realidade.
Pergunta - Isso é algo de novo em
seu percurso de atriz?
Huppert - Não. Sei que é a parte
que Claude Régy mais pesquisa. E
é sempre essa que busco. Eu já
atuei muitas vezes em situações
de domínio, mas o ator está sempre ao mesmo tempo no domínio
e no instantâneo, sempre na encruzilhada do estado de consciência e de inconsciência. Se estivesse
em estado total de abandono ou
ausência de controle, não seria
mais ator, estaria delirando. Em
"4.48 Psychose", a dificuldade é
que a fronteira é abolida. Chegamos muito perto do delírio.
Pergunta - Esse texto não pode
ser assustador?
Huppert - Sim. Eu não disse que
ele não me assusta. Mas não é isso
que poderia ter me impedido de
fazer a peça. Nunca imaginei desistir por causa desse medo.
Pergunta - O que poderia fazê-la
desistir, você que já representou
personagens extremos?
Huppert - Nunca representei
coisas horríveis, representei coisas que tinham a aparência de
horror. Num filme como "A Professora de Piano", além da aparência de horror, de violência, de
brutalidade, há inocência. Parece-me que, na maioria dos papéis
que tenho vontade de fazer, essa
inocência é mais ou menos protegida, está lá. Isso é essencial.
Pergunta - Onde fica a inocência
de Kane em "4.48 Psychose"?
Huppert - O que torna o texto
político é que Sarah Kane, doente
dela mesma, é também doente do
mundo. Não digo que seja o mundo que a deixou doente, mas ela
também quis se dar conta do estado do mundo. Sua parte de inocência foi o fato de pensar que o
teatro poderia mudar, talvez não
o mundo, mas algumas pessoas.
Ela quis realmente acreditar nisso. O fato de ela ter tido essa fé é
prova de uma certa inocência.
4.48 PSYCHOSE. Texto: Sarah Kane.
Direção: Claude Régy. Com: Isabelle
Huppert e Gérard Watkins. Quando: hoje,
para convidados, de amanhã a dia 27.
Onde: Sesc Consolação (rua Dr. Vila Nova,
245, São Paulo, tel. 0/xx/11/3256-2281).
Quanto: R$ 40 (ingressos esgotados).
Tradução Clara Allain
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