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São Paulo, segunda-feira, 24 de fevereiro de 2003

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A atriz Isabelle Huppert assume a voz dilacerada que a suicida britânica Sarah Kane criou na peça "4.48 Psychose", sob a direção do francês Claude Régy

Sem saída

France Presse
A atriz Isabelle Huppert, em cena de "Deux", filme do alemão Werner Schroeter


SALINO BRIGITTE
DO "LE MONDE"

Imóvel no centro do palco na maior parte do tempo, a atriz francesa Isabelle Huppert vive um personagem que narra as angústias de estar à beira do suicídio. A valorização do texto é a marca dessa encenação de "4.48 Psychose", de Sarah Kane (1971-1999), pelo diretor Claude Régy, 78.
Esse último trabalho da autora britânica, que se enforcou aos 28 anos, arrebatou Huppert. "Foi na impossibilidade que eu tinha em dar nome ao que senti ao ler a peça que encontrei a fonte de meu desejo de representá-la", disse ela em entrevista ao "Le Monde".
A peça estréia hoje para convidados no Sesc Consolação, em São Paulo, e fica em cartaz até quinta para o público em geral. Os ingressos estão esgotados.

Pergunta - Em 2000, você foi Medéia, de Eurípides, em Avignon. Naquela época você observou que, em grego, a mesma palavra significa infanticídio e suicídio. Logo depois de Medéia, você atuou em "4.48 Psychose", de Sarah Kane, uma peça obcecada pelo suicídio.
Isabelle Huppert -
É verdade, passei do infanticídio ao suicídio. Sarah Kane não tinha filho, mas matou a criança que existia dentro dela. Ela disse que tinha a doença de se tornar adulta. Ao final da peça, disse também: "Não sinto nenhum desejo de morte. Nenhum suicida o tem". O que preocupa é a idéia de reproduzir o discurso de alguém que fala de se suicidar e que terminou por fazer isso -se bem que não se fale apenas em suicídio em "4.48 Psychose". Kane conta de maneira precisa o que viveu pouco tempo antes de escrever.

Pergunta - Como livrar-se do romantismo nocivo em torno da morte de Sarah Kane?
Huppert -
Sempre se pode ser sentimental, nessas circunstâncias. Ao mesmo tempo, porém, tudo nos escritos de Sarah Kane nos afasta disso. A verdadeira subversão não está tanto naquilo que ela conta, mas em como o faz. Sua forma é muito poderosa, muito poética. Ela procura a sensação por meio da sonoridade, dos ritmos, das cadências e dos silêncios, muitos silêncios. Mais do que uma linguagem do sentimento, é a linguagem do sentido. Ela não nos incita à fantasia romântica. Sua peça também é uma linguagem de vida. Eu não diria que "4.48 Psychose" é um hino à vida, mas possui muita energia. Sarah Kane é alguém que morre em pé.

Pergunta - Foi você quem procurou Claude Régy com o texto?
Huppert -
Claude Régy me disse que tinha vontade de montar a peça comigo. Então a li. Não sei se se pensa em algo preciso quando se lê um texto como aquele. Foi na impossibilidade que eu tinha em dar nome ao que senti ao ler a peça que encontrei a fonte de meu desejo de representá-la.

Pergunta - Você é acompanhada pelo ator Gérard Watkins. Como estão divididos os papéis?
Huppert -
Claude Régy quis que fôssemos dois. "4.48 Psychose" não é um monólogo, mas uma voz dilacerada. Em sua primeira encenação, no Royal Court, havia quatro atores. A peça pode ser montada com três ou com um só. Pode-se imaginar que a mulher que fala o faz consigo mesma, e que a voz de Watkins surge em seu espírito como uma voz mediadora entre ela e o mundo. O fato de sermos dois também remete a peça a seu aspecto mais simples, que é uma história de amor.

Pergunta - É preciso recorrer a outra coisa senão o saber fazer quando se representa Sarah Kane?
Huppert -
O que pensamos saber fazer não influi em nada, sobretudo com Claude Régy. Ele não convoca o ator que vive dentro do ator. Ele chama a pessoa que vive no ator, o que supõe que este terá que livrar-se de seu saber fazer e substituí-lo pelo saber ser. No teatro, vivemos na convenção do lugar, do tempo e do espaço, mas fazemos de conta que isso tudo não existe. Régy não faz nada para esquecer que existe, traz o ator de volta a esse princípio da realidade.

Pergunta - Isso é algo de novo em seu percurso de atriz?
Huppert -
Não. Sei que é a parte que Claude Régy mais pesquisa. E é sempre essa que busco. Eu já atuei muitas vezes em situações de domínio, mas o ator está sempre ao mesmo tempo no domínio e no instantâneo, sempre na encruzilhada do estado de consciência e de inconsciência. Se estivesse em estado total de abandono ou ausência de controle, não seria mais ator, estaria delirando. Em "4.48 Psychose", a dificuldade é que a fronteira é abolida. Chegamos muito perto do delírio.

Pergunta - Esse texto não pode ser assustador?
Huppert -
Sim. Eu não disse que ele não me assusta. Mas não é isso que poderia ter me impedido de fazer a peça. Nunca imaginei desistir por causa desse medo.

Pergunta - O que poderia fazê-la desistir, você que já representou personagens extremos?
Huppert -
Nunca representei coisas horríveis, representei coisas que tinham a aparência de horror. Num filme como "A Professora de Piano", além da aparência de horror, de violência, de brutalidade, há inocência. Parece-me que, na maioria dos papéis que tenho vontade de fazer, essa inocência é mais ou menos protegida, está lá. Isso é essencial.

Pergunta - Onde fica a inocência de Kane em "4.48 Psychose"?
Huppert -
O que torna o texto político é que Sarah Kane, doente dela mesma, é também doente do mundo. Não digo que seja o mundo que a deixou doente, mas ela também quis se dar conta do estado do mundo. Sua parte de inocência foi o fato de pensar que o teatro poderia mudar, talvez não o mundo, mas algumas pessoas. Ela quis realmente acreditar nisso. O fato de ela ter tido essa fé é prova de uma certa inocência.


4.48 PSYCHOSE. Texto: Sarah Kane. Direção: Claude Régy. Com: Isabelle Huppert e Gérard Watkins. Quando: hoje, para convidados, de amanhã a dia 27. Onde: Sesc Consolação (rua Dr. Vila Nova, 245, São Paulo, tel. 0/xx/11/3256-2281). Quanto: R$ 40 (ingressos esgotados).

Tradução Clara Allain



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