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FERREIRA GULLAR
Repressão e preconceito
Está tudo muito errado; escolheram reprimir os desejos mais genuínos em função das normas
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VAMOS FALAR a verdade: a sociedade em que vivemos é pura repressão. Já foi pior, claro,
muito pior. Houve tempo em que as
mulheres não podiam mostrar nem
o pé, quanto mais as coxas ou a barriguinha, como mostram hoje. Naquela época, os homens apenas imaginavam como seria o corpo da mulher com quem iam se casar. Hoje,
podem vê-lo inteiro, da barriga às
nádegas, com exceção talvez do púbis. Por que a repressão? Por mero
preconceito, pelo propósito moralista que tomou conta da sociedade.
Não nascemos nus? Por que então
temos de andar cobertos de roupas,
que nos escondem o corpo? Disse
que hoje as mulheres mostram quase tudo, mas isso na praia, porque,
fora de lá, escondem quase tudo.
Claro, não como antigamente,
quando tinham que se cobrir de
saias e mais saias, blusas e corpetes.
E os homens? Esses, coitados, tendo que imitar os hábitos europeus,
sufocavam dentro de roupas pesadas, paletós e coletes. O calor insuportável terminou por obrigá-los a
aliviar a vestimenta, mas, até hoje,
homem que se respeita usa paletó e
gravata. Às vezes, alguns tiram a gravata, mas dificilmente tiram o paletó, a camisa, as calças; a cueca, então,
nem pensar. Por que não podemos
andar nus como os índios? Não nascemos nus? Nos países frios, no inverno, admito, não dá para abandonar as roupas, mas, nos trópicos, as
roupas são a expressão dos preconceitos morais e da repressão religiosa. Os únicos que se aventuram a ficar nus em pêlo são os nudistas, mas
apenas em certas praias, e não por
culpa deles; por culpa, sim, da hipocrisia social que obrigaria a polícia a
prendê-los. Por que não se pode entrar nu num banco, já que obscenidades maiores são lá praticadas com
permissão da lei?
A verdade é que a repressão está
presente em todos os momentos de
nossa vida. E de tal modo introjetou-se em nós que, quase automaticamente, vamos impondo-a sobre cada pessoa, mal começa a entender as
coisas. Não pode pôr a mão na boca,
o dedo no nariz, juntar a chupeta do
chão e chupá-la, trepar na cadeira de
balanço, aproximar-se do fogão,
brincar com faca e tesoura, chupar
bola de gude. Não pode nada, nada!
Além disso, tem de obedecer aos
mais velhos -mesmo os que tenham mais de 30 anos-, aturar as
gaiatices dos irmãos, apanhar sem
revidar etc. Em seguida, vem a fase
escolar, que nos obriga a soletrar,
decorar, aprender a ler, a escrever, a
contar, a dividir, a multiplicar. Ou
seja, o sujeitinho que nasce livre é
transformado em outra pessoa, metido numa camisa-de-força, engessado, robotizado. E se se rebela, paga
caro; conforme seja, cortam-lhe a
mesada; se insiste, termina internado ou preso, vira bandido. E depois
reclamam que o cara virou bandido!
Se ele gosta de birita, maconha, cocaína, crack ou ecstasy, é problema
dele. Mas não, pai, mãe, polícia, a sociedade inteira se volta contra ele. E
depois ainda se tem o desplante de
afirmar que vivemos numa democracia. Como democracia, se o cara
tem que se sujeitar às imposições sociais? Por quê? Se o cara cheira, fica
doidão e sai assaltando os caretas, é
problema dele. O assaltado que se vire. Eu gostaria de saber por que esse
preconceito contra quem gosta de
drogas. Não tem gente que gosta de
alpinismo, de asa-delta, de mascar
chiclete, comer chocolate, malhar
na academia? E então? Cada um
nasce com suas manias e preferências, que devem ser respeitadas pelos demais, do contrário não se pode
falar que vivemos numa sociedade
que respeita os direitos dos cidadãos.
A verdade é que não respeita. Nem
o poderia, uma vez que quase nunca
as normas sociais coincidem com as
necessidades e desejos das pessoas.
Por exemplo, se o cara tem preferências sexuais, que escapam ao que
se chama de normalidade, está sujeito, conforme o caso, a condenações judiciais ou até linchamento
por parte dos fanáticos defensores
daquelas normas. Se o sujeito nasceu pedófilo, por que sua preferência sexual é considerada crime? Por
que punir alguém que apenas obedece a impulsos inatos que lhe são
impostos pela natureza?
Está tudo muito errado. Por razões que ignoro -mas que refuto liminarmente-, os homens escolheram reprimir seus desejos mais genuínos e seu modo espontâneo de
vida em função de normas, disciplina, valores que, como observou
Nietzsche, só favorecem os fracos e
covardes. Só esses necessitam de leis
repressoras para compensar a natural superioridade dos fortes.
Agora, se alguém me pergunta se
permito que defequem em minha
sala e não no vaso do banheiro, respondo que devem fazê-lo no vaso. E
que dêem a descarga, certo?
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