São Paulo, quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

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NINA HORTA

Dentro da cozinha


Sexy como ela só, trabalha dançando, rebolando ao ritmo da festa, numa energia sem fim


ESTAVA CALOR na cozinha da Casa das Caldeiras, mas batia um vento lá de cima daquele telhado antigo. Não é desesperador o calor na cozinha. Você se acostuma, não sei bem o porquê, talvez aquela necessidade de levar alguma coisa a cabo porque a festa não espera.
De vez em quando, fico de olho parado olhando a nossa equipe trabalhar e acho bonito. Criaram quase que um corpo só e o serviço flui, mudo, um berro eventual.
Suely, que chegou mocinha, com cintura de pilão, comeu de tudo e, agora, depois de uma cirurgia, voltou ao pilão. Sexy como ela só, trabalha dançando, rebolando ao ritmo da festa, numa energia sem fim. E é a única cozinheira que não usa aquelas horrendas redes de cabelo e sim um turbante estampado, bem amarrado na cabeça que não deixa escapar um fio, enquanto a tal rede, rede é.
Jhay é cozinheiro de mão cheia, mas não dança em serviço. Faz cara de bravo o tempo todo, ansioso. E, quando vai arranjar uma terrine sobre um prato, sai de baixo, olha o santo, é um artista autodidata, nasceu sabendo bonitezas, tem uma sensibilidade total para o que é belo que ninguém tira dele. William é outro que usa cores da comida para pintar e bordar, calmo e irônico.
E lá estava eu babando com os filhotes quando vi a turma da bebida levando os ingredientes para montar o bar de caipirinhas. Era tudo que refresca no mundo. Quadrados de melancia, limas-da-pérsia, limões-sicilianos, limões-taiti, muito e muito gelo. Não éramos nós que estávamos fazendo o bar e sim a "Help". Não resisti, pedi uma caipirinha de limão. É a que peço sempre quando não sou levada pela imaginação perversa. Mas o barman, ao ver a minha cabeça branca, optou por incrementar a receita. Diminuiu a cachaça, diminuiu muito, o mesmo com o gelo e incluiu gengibre e cravo. Era um chá de gripe, fui tomando aos golinhos, muito triste, mas sem querer magoá-lo.
Geralmente os mais velhos não bebem, ou por uma certa circunspeção ou porque, com a chegada dos anos, a bebida deve ser evitada. Como nunca um médico me alertou sobre isso, me dou muito bem com vinhos, destilados, coquetéis, sangrias, clericots, cervejas. Nunca dirigi. Dirigir é que deve fazer muito mal.
Passou um tempo, e a fofoca dos garçons já havia levado ao barman Herbie que eu chamara a caipirinha dele de chá-de-velha. Ah, os brios!!!!
Demorou um pouco e chegou nas minhas mãos, trazida pelo próprio, o que eu chamaria de um poema tropical. Um copo alto de cristal liso, transparente, com uma caipira de caju e laranja sanguínea feita nos conformes.
O primeiro choque foi nos olhos. Muito linda, parecia o Brasil enfiado num copo, como é que os gringos deixariam de amar uma bebida que traduzia a terra que visitavam? (A festa era para eles.) As cores se misturavam sem exagero, o caju tinha cara de caju, a polpa solta da casca, carnuda, comestível, e a casca com o colorido que só um caju tem. A laranja sanguínea soltava seu vermelho, os cubos de gelo davam brilho ao todo. Vou procurar a receita, pensei. Deixei para depois. Na alma a caipirinha soou como um sino cristalino, uma bica fresca e lúcida no meio do deserto.

ninahorta@uol.com.br


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