São Paulo, quarta-feira, 24 de março de 2004

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MARCELO COELHO

Retórica de supermercado

Sou bem consumista: depois de alguns dias sem fazer compras, experimento perturbações em meu equilíbrio psicológico. Supermercados, entretanto, andam me cansando bastante. Começo implicando com o carrinho. Ou é grande demais ou é pequeno demais para o que eu preciso levar. Antes disso, já no estacionamento, encontro alguns motivos de encheção: entregam-me um cartão de plástico que não serve para nada, mas que não posso perder. Junto vem um folheto com as ofertas da semana, que não leio e que me parece um desperdício de papel.
Lá dentro, nunca acho as coisas. Protesto intimamente contra o que me parece de uma ilogicidade total: o azeite nunca está do lado do vinagre, mas sim em outro corredor, dedicado aos óleos de soja, de milho e de girassol. A cobertura do sorvete não está perto do sorvete, mas sim das geléias e goiabadas. O papel higiênico fica na seção dos atoalhados e guardanapos, mas eu preferia que ficasse com os artigos de banheiro.
Vou e volto pelos corredores, o que talvez seja a intenção do gerente, mas minha atenção se fecha às novidades e possíveis compras imprevistas. Destinados a suscitar impulsos de consumo irracional, os badulaques perto do caixa nunca me interessam: baralhos, isqueiros, balas de eucalipto.
Não me cabe aqui fazer crítica de supermercados -o gênero ainda não foi inventado-, mas o assunto vem a propósito do novo filme de Marcelo Masagão, "1,99", que faz uma espécie de radiografia do consumismo e das promessas da publicidade.
O filme se passa quase o tempo todo dentro de um supermercado. Mas é um supermercado especial, inteiramente branco -um "supermercado de palavras", como diz Masagão-, em que os produtos à venda não se distinguem. Fregueses mudos passam pelos corredores, escolhendo entre embalagens brancas que nada oferecem, exceto um slogan ou uma palavra de apelo publicitário: "faça mais por você", "mude", "experimente", "cuidamos do seu bem-estar", coisas desse tipo.
Nesse cenário, que tem algo de instalação de arte ou de filme de ficção científica ("THX 1138", de George Lucas, é a lembrança que vem à mente), ocorre uma série de situações curtas, como esquetes ou vinhetas, que convergem para a denúncia -claro- do consumismo e da alienação contemporâneos.
Dois pais de família disputam aos socos um produto, ou melhor, uma caixa branca onde se lê apenas o conhecido slogan "porque somos mamíferos". Há um congestionamento de carrinhos, em que os fregueses perdem a cabeça como no trânsito. No visor de um caixa eletrônico, a imagem de uma bela jovem parece chegar ao orgasmo quando o freguês passa o cartão pelo "slot" apropriado.
Eis a classe média como uma população de zumbis num ambiente asséptico e claustrofóbico, consumindo sem parar uma série de clichês e ilusões vazias.
Para não dizerem que não viu "o outro lado da moeda", o diretor também apresenta o mundo dos excluídos, um monte de gente malvestida, espremendo-se entre pilhas de pneus velhos, à espera de um lugar no supermercado branco. As tentativas de mudar esse estado de coisas não dão certo, como sabemos; e o filme encena, sempre com ironia, algumas movimentações de protesto que ocupam o supermercado para terminar em indiferença ou em fracasso.
Tudo bem. Só que, por mais que eu concordasse com suas "mensagens", minha antipatia pelo filme aumentava a cada minuto. O que há de errado com "1,99"? Muita coisa, a meu ver. Seu conteúdo crítico parece falso. Tudo aquilo que se quer mostrar de errado, de condenável, de ridículo no consumismo contemporâneo é filmado como se fosse uma apresentação do "Lago dos Cisnes": movimentos coreografados, poses em câmera lenta, sublimidades de papel higiênico ou de absorvente feminino.
Contribui muito para isso a trilha sonora, naquele minimalismo tipo "Koyaanisqatsi" -outro filme que certamente inspirou o diretor. É uma música muito lenta, repetitiva e melancólica, que parece dizer o tempo todo: "Como se agitam, como são tolos esses pobres mortais... Ignoram as imensidões do espaço e as belezas infinitas da alma". A música, a câmera, as legendas, tudo parece provir de uma esfera bem-aventurada e superior, que, ao mesmo tempo se compadece da miséria humana, critica-a e desculpa-a abstratamente.
O resultado é um filme que se preserva do contato com a realidade, exatamente como os personagens e figuras que põe em cena. Mais do que isso, é da própria retórica da publicidade que Masagão não consegue escapar. A forma da vinheta curta, com um estilo de ironia "aprovativo", e não negador, é tipicamente publicitária. A estilização dos comportamentos consumistas, que em tese serviria para reduzi-los a seu âmago absurdo, termina produzindo uma seqüência de imagens sedosas, aceitáveis, conformadas: "É, é isso mesmo...".
Não estou entre os que criticaram "Cidade de Deus" pela chamada "cosmética da fome". Achei o filme forte e real. Mas seria o caso de perguntar se o cinema brasileiro não está sendo vítima às vezes de uma espécie de má consciência publicitária -um sentimento de culpa social que se desafoga em filmes feitos nas horas vagas, aparentemente críticos, mas cuja melancolia serena e ironia "sensível" acabam por ter o efeito de um dar de ombros, sem indignação, sem angústia, sem drama nenhum -nem mesmo o da própria culpa.


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