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MARCELO COELHO
Retórica de supermercado
Sou bem consumista: depois
de alguns dias sem fazer compras, experimento perturbações
em meu equilíbrio psicológico.
Supermercados, entretanto, andam me cansando bastante. Começo implicando com o carrinho.
Ou é grande demais ou é pequeno
demais para o que eu preciso levar. Antes disso, já no estacionamento, encontro alguns motivos
de encheção: entregam-me um
cartão de plástico que não serve
para nada, mas que não posso
perder. Junto vem um folheto com
as ofertas da semana, que não
leio e que me parece um desperdício de papel.
Lá dentro, nunca acho as coisas.
Protesto intimamente contra o
que me parece de uma ilogicidade
total: o azeite nunca está do lado
do vinagre, mas sim em outro corredor, dedicado aos óleos de soja,
de milho e de girassol. A cobertura do sorvete não está perto do
sorvete, mas sim das geléias e
goiabadas. O papel higiênico fica
na seção dos atoalhados e guardanapos, mas eu preferia que ficasse com os artigos de banheiro.
Vou e volto pelos corredores, o
que talvez seja a intenção do gerente, mas minha atenção se fecha às novidades e possíveis compras imprevistas. Destinados a
suscitar impulsos de consumo irracional, os badulaques perto do
caixa nunca me interessam: baralhos, isqueiros, balas de eucalipto.
Não me cabe aqui fazer crítica
de supermercados -o gênero
ainda não foi inventado-, mas o
assunto vem a propósito do novo
filme de Marcelo Masagão,
"1,99", que faz uma espécie de radiografia do consumismo e das
promessas da publicidade.
O filme se passa quase o tempo
todo dentro de um supermercado.
Mas é um supermercado especial,
inteiramente branco -um "supermercado de palavras", como
diz Masagão-, em que os produtos à venda não se distinguem.
Fregueses mudos passam pelos
corredores, escolhendo entre embalagens brancas que nada oferecem, exceto um slogan ou uma
palavra de apelo publicitário: "faça mais por você", "mude", "experimente", "cuidamos do seu bem-estar", coisas desse tipo.
Nesse cenário, que tem algo de
instalação de arte ou de filme de
ficção científica ("THX 1138", de
George Lucas, é a lembrança que
vem à mente), ocorre uma série
de situações curtas, como esquetes ou vinhetas, que convergem
para a denúncia -claro- do
consumismo e da alienação contemporâneos.
Dois pais de família disputam
aos socos um produto, ou melhor,
uma caixa branca onde se lê apenas o conhecido slogan "porque
somos mamíferos". Há um congestionamento de carrinhos, em
que os fregueses perdem a cabeça
como no trânsito. No visor de um
caixa eletrônico, a imagem de
uma bela jovem parece chegar ao
orgasmo quando o freguês passa
o cartão pelo "slot" apropriado.
Eis a classe média como uma
população de zumbis num ambiente asséptico e claustrofóbico,
consumindo sem parar uma série
de clichês e ilusões vazias.
Para não dizerem que não viu
"o outro lado da moeda", o diretor também apresenta o mundo
dos excluídos, um monte de gente
malvestida, espremendo-se entre
pilhas de pneus velhos, à espera
de um lugar no supermercado
branco. As tentativas de mudar
esse estado de coisas não dão certo, como sabemos; e o filme encena, sempre com ironia, algumas
movimentações de protesto que
ocupam o supermercado para
terminar em indiferença ou em
fracasso.
Tudo bem. Só que, por mais que
eu concordasse com suas "mensagens", minha antipatia pelo filme
aumentava a cada minuto. O que
há de errado com "1,99"? Muita
coisa, a meu ver. Seu conteúdo
crítico parece falso. Tudo aquilo
que se quer mostrar de errado, de
condenável, de ridículo no consumismo contemporâneo é filmado
como se fosse uma apresentação
do "Lago dos Cisnes": movimentos coreografados, poses em câmera lenta, sublimidades de papel higiênico ou de absorvente feminino.
Contribui muito para isso a trilha sonora, naquele minimalismo
tipo "Koyaanisqatsi" -outro filme que certamente inspirou o diretor. É uma música muito lenta,
repetitiva e melancólica, que parece dizer o tempo todo: "Como se
agitam, como são tolos esses pobres mortais... Ignoram as imensidões do espaço e as belezas infinitas da alma". A música, a câmera, as legendas, tudo parece
provir de uma esfera bem-aventurada e superior, que, ao mesmo
tempo se compadece da miséria
humana, critica-a e desculpa-a
abstratamente.
O resultado é um filme que se
preserva do contato com a realidade, exatamente como os personagens e figuras que põe em cena.
Mais do que isso, é da própria retórica da publicidade que Masagão não consegue escapar. A forma da vinheta curta, com um estilo de ironia "aprovativo", e não
negador, é tipicamente publicitária. A estilização dos comportamentos consumistas, que em tese
serviria para reduzi-los a seu
âmago absurdo, termina produzindo uma seqüência de imagens
sedosas, aceitáveis, conformadas:
"É, é isso mesmo...".
Não estou entre os que criticaram "Cidade de Deus" pela chamada "cosmética da fome". Achei
o filme forte e real. Mas seria o caso de perguntar se o cinema brasileiro não está sendo vítima às vezes de uma espécie de má consciência publicitária -um sentimento de culpa social que se desafoga em filmes feitos nas horas vagas, aparentemente críticos, mas
cuja melancolia serena e ironia
"sensível" acabam por ter o efeito
de um dar de ombros, sem indignação, sem angústia, sem drama
nenhum -nem mesmo o da própria culpa.
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