São Paulo, sábado, 24 de março de 2007

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Livros - Crítica/romance

John Updike acerta ao narrar a trajetória de um extremista

Em "Terrorista", escritor lança olhar aguçado ao tecido urbano dos Estados Unidos

PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Você daria a sua vida?" "É claro... se assim Deus quiser."
O diálogo retrata na ficção parte do processo que leva ao recrutamento de um terrorista, neste caso, "made in America".
Da doutrinação à sondagem, o novo romance de John Updike descreve a trajetória de um extremista islâmico que rejeita o mundo terreno em prol da recompensa no paraíso.
Ahmad Ashmawy Mulloy, o protagonista, é um adolescente de New Prospect, filho de uma mãe norte-americana de ascendência irlandesa e de um estudante árabe que fazia intercâmbio cultural e abandonou a família para retornar ao seu Egito natal.
Na radicalização religiosa, Ahmad transpõe um deserto identitário em que encontra personagens representativas de uma sociedade em crise, à qual Updike não poupa críticas, reforçadas pelas citações corânicas e pelos chavões extremistas, por vezes monorrimos, que o estudante híbrido reproduz de seu "professor". Um xeque iemenita que compara o êxtase dos cristãos afro-americanos ao "transe aparvalhado do candomblé brasileiro" e convence Ahmad a tornar-se motorista de caminhão a fim de prepará-lo para um ato terrorista.
A essa fé que quase não se abala, mesmo diante das tentações mundanas, e às instruções do xeque Rashid, o contraponto se faz por meio de um orientador educacional judeu (não praticante) que tenta convencê-lo a entrar numa faculdade.
Neste seu 22º romance, "Terrorista", Updike se propõe a entrar no mundo de um jovem religioso, embora em muitas páginas a distância se mantenha. O autor contempla ambos os lados de uma relação cujo fosso se amplia. A mesma imagem aparece no discurso do "nós" e do "outro": o xeque compara os infiéis a baratas, e uma funcionária do serviço de segurança descreve "essas pessoas" (os muçulmanos) exatamente da mesma forma. Os estereótipos são bilaterais.
Ahmad cita o pensador egípcio Sayyid Qutb para argumentar que "não há povo mais distante de Deus e da religião que os americanos". Do outro lado, em diferentes vozes, a caracterização dos "fanáticos árabes" freqüentemente é plana.
A idéia de escrever o livro surgiu quando o autor atravessava o Lincoln Tunnel, que foi objeto de uma tentativa de ataque nos anos 1990. Influenciado pelos atentados do 11 de Setembro e pela chamada guerra antiterror, Updike opta por um tema complexo e comete alguns deslizes. Em duas passagens, afirma que Abraão ofereceu "seu único filho" a Deus. Judeus e muçulmanos divergem sobre quem teria sido oferecido em sacrifício, Isaac ou Ismael, mas em geral as religiões abraâmicas concordam que Abraão haveria tido um filho com Hagar e outro com Sara.
Quando descreve a visita de Ahmad a uma igreja para ouvir uma colega cantar no coral, o autor diz que o anti-herói se horroriza com os vitrais que representam "incidentes na vida breve e inglória do suposto Senhor dos cristãos". Compreende-se que a representação motive rejeição em um muçulmano, mas a vida de Cristo, reconhecido como um profeta no Islã, é considerada um exemplo de dedicação religiosa. Ou seja, a descrição é inverossímil.
Cronista dos subúrbios de classe média, do "Bible Belt" a Nova Jersey, Updike retrata o tecido urbano dos EUA por meio de um olhar aguçado e uma técnica narrativa elaborada que convidam à leitura.


PAULO DANIEL FARAH é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

TERRORISTA
Autor:
John Updike
Tradução: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 47 (336 págs.)
Avaliação: Bom

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