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Livros - Crítica/romance
John Updike acerta ao narrar a trajetória de um extremista
Em "Terrorista", escritor lança olhar aguçado ao tecido urbano dos Estados Unidos
PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Você daria a sua vida?" "É claro... se
assim Deus quiser."
O diálogo retrata na ficção parte do processo que leva ao recrutamento de um terrorista,
neste caso, "made in America".
Da doutrinação à sondagem,
o novo romance de John Updike descreve a trajetória de um
extremista islâmico que rejeita
o mundo terreno em prol da recompensa no paraíso.
Ahmad Ashmawy Mulloy, o
protagonista, é um adolescente
de New Prospect, filho de uma
mãe norte-americana de ascendência irlandesa e de um estudante árabe que fazia intercâmbio cultural e abandonou a
família para retornar ao seu
Egito natal.
Na radicalização religiosa,
Ahmad transpõe um deserto
identitário em que encontra
personagens representativas
de uma sociedade em crise, à
qual Updike não poupa críticas,
reforçadas pelas citações corânicas e pelos chavões extremistas, por vezes monorrimos, que
o estudante híbrido reproduz
de seu "professor". Um xeque
iemenita que compara o êxtase
dos cristãos afro-americanos
ao "transe aparvalhado do candomblé brasileiro" e convence
Ahmad a tornar-se motorista
de caminhão a fim de prepará-lo para um ato terrorista.
A essa fé que quase não se
abala, mesmo diante das tentações mundanas, e às instruções
do xeque Rashid, o contraponto se faz por meio de um orientador educacional judeu (não
praticante) que tenta convencê-lo a entrar numa faculdade.
Neste seu 22º romance, "Terrorista", Updike se propõe a entrar no mundo de um jovem religioso, embora em muitas páginas a distância se mantenha.
O autor contempla ambos os lados de uma relação cujo fosso
se amplia. A mesma imagem
aparece no discurso do "nós" e
do "outro": o xeque compara os
infiéis a baratas, e uma funcionária do serviço de segurança
descreve "essas pessoas" (os
muçulmanos) exatamente da
mesma forma. Os estereótipos
são bilaterais.
Ahmad cita o pensador egípcio Sayyid Qutb para argumentar que "não há povo mais distante de Deus e da religião que
os americanos". Do outro lado,
em diferentes vozes, a caracterização dos "fanáticos árabes"
freqüentemente é plana.
A idéia de escrever o livro
surgiu quando o autor atravessava o Lincoln Tunnel, que foi
objeto de uma tentativa de ataque nos anos 1990.
Influenciado pelos atentados
do 11 de Setembro e pela chamada guerra antiterror, Updike
opta por um tema complexo e
comete alguns deslizes. Em
duas passagens, afirma que
Abraão ofereceu "seu único filho" a Deus. Judeus e muçulmanos divergem sobre quem
teria sido oferecido em sacrifício, Isaac ou Ismael, mas em geral as religiões abraâmicas concordam que Abraão haveria tido um filho com Hagar e outro
com Sara.
Quando descreve a visita de
Ahmad a uma igreja para ouvir
uma colega cantar no coral, o
autor diz que o anti-herói se
horroriza com os vitrais que representam "incidentes na vida
breve e inglória do suposto Senhor dos cristãos". Compreende-se que a representação motive rejeição em um muçulmano, mas a vida de Cristo, reconhecido como um profeta no
Islã, é considerada um exemplo
de dedicação religiosa. Ou seja,
a descrição é inverossímil.
Cronista dos subúrbios de
classe média, do "Bible Belt" a
Nova Jersey, Updike retrata o
tecido urbano dos EUA por
meio de um olhar aguçado e
uma técnica narrativa elaborada que convidam à leitura.
PAULO DANIEL FARAH é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP
TERRORISTA
Autor: John Updike
Tradução: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 47 (336 págs.)
Avaliação: Bom
Leia trecho
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