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CONTARDO CALLIGARIS
A turba do "pega e lincha"
Querem linchar para esquecer que ontem voltaram bêbados e não sabem em quem bateram
NA ÚLTIMA sexta-feira, passei
duas horas em frente à televisão. Não adiantava zapear:
quase todos os canais estavam, ao vivo, diante da delegacia do Carandiru, enquanto o pai da pequena Isabella estava sendo interrogado.
O pano de fundo era uma turba de
200 ou 300 pessoas. Permaneceriam lá, noite adentro, na esperança
de jogar uma pedra nos indiciados
ou de gritar "assassinos" quando
eles aparecessem, pedindo "justiça"
e linchamento.
Mais cedo, outros sitiaram a moradia do avô de Isabella, onde estavam o pai e a madrasta da menina.
Manifestavam sua raiva a gritos e
chutes, a ponto de ser necessário garantir a segurança da casa.
Vindos do bairro ou de longe (horas de estrada, para alguns), interrompendo o trabalho ou o descanso,
deixando a família, os amigos ou, talvez, a solidão -quem eram? Por que
estavam ali? A qual necessidade interna obedeciam sua presença e a
truculência de suas vozes?
Os repórteres de televisão sabem
que os membros dessas estranhas
turbas respondem à câmera de televisão como se fossem atores. Quando nenhum canal está transmitindo,
ficam tranqüilos, descansam a voz, o
corpo e a alma. Na hora em que, numa câmera, acende-se a luz da gravação, eles pegam fogo.
Há os que querem ser vistos por
parentes e amigos do bar, e fazem sinais ou erguem cartazes. Mas, em
sua maioria, os membros da turba se
animam na hora do "ao vivo" como
se fossem "extras", pagos por uma
produção de cinema. Qual é o script?
Eles realizam uma cena da qual
eles supõem que seja o que nós, em
casa, estamos querendo ver. Parecem se sentir investidos na função
de carpideiras oficiais: quando a
gente olha, eles devem dar evasão às
emoções (raiva, desespero, ódio)
que nós, mais comedidos, nas salas e
nos botecos do país, reprimiríamos
comportadamente.
Pelo que sinto e pelo que ouço ao
redor de mim, eles estão errados. O
espetáculo que eles nos oferecem
inspira um horror que rivaliza com o
que é produzido pela morte de
Isabella.
Resta que eles supõem nossa
cumplicidade, contam com ela. Gritam seu ódio na nossa frente para
que, todos juntos, constituamos um
grande sujeito coletivo que eles representariam: "nós", que não matamos Isabella; "nós", que amamos e
respeitamos as crianças -em suma:
"nós", que somos diferentes dos assassinos; "nós", que, portanto, vamos linchar os "culpados".
Em parte, a irritação que sinto ao
contemplar a turma do "pega e lincha" tem a ver com isto: eles se agitam para me levar na dança com
eles, e eu não quero ir.
As turbas servem sempre para a
mesma coisa. Os americanos de pequena classe média que, no Sul dos
Estados Unidos, no século 19 e no
começo do século 20, saíam para linchar negros procuravam só uma
certeza: a de eles mesmos não serem
negros, ou seja, a certeza de sua diferença social.
O mesmo vale para os alemães que
saíram para saquear os comércios
dos judeus na Noite de Cristal, ou
para os russos ou poloneses que faziam isso pela Europa Oriental afora, cada vez que desse: queriam sobretudo afirmar sua diferença.
Regra sem exceções conhecidas: a
vontade exasperada de afirmar sua
diferença é própria de quem se sente
ameaçado pela similaridade do outro. No caso, os membros da turba
gritam sua indignação porque precisam muito proclamar que aquilo
não é com eles. Querem linchar porque é o melhor jeito de esquecer que
ontem sacudiram seu bebê para que
parasse de chorar, até que ele ficou
branco. Ou que, na outra noite, voltaram bêbados para casa e não se
lembram em quem bateram e quanto.
Nos primeiros cinco dias depois
do assassinato de Isabella, um adolescente morreu pela quebra de um
toboágua, uma criança de quatro
anos foi esmagada por um poste derrubado por um ônibus, uma menina
pulou do quarto andar apavorada
pelo pai bêbado, um menino de nove
anos foi queimado com um ferro de
marcar boi. Sem contar as crianças
que morreram de dengue. Se não
bastar, leia a coluna de Gilberto Dimenstein na Folha de domingo
passado.
A turba do "pega e lincha" representa, sim, alguma coisa que está
em todos nós, mas que não é um
anseio de justiça. A própria necessidade enlouquecida de se diferenciar dos assassinos presumidos
aponta essa turma como representante legítima da brutalidade com
a qual, apesar de estatutos e leis, as
crianças podem ser e continuam
sendo vítimas dos adultos.
ccalligari@uol.com.br
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