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NINA HORTA
40 anos de pecado?
A comida está no olho de quem a vê, no seu passado, no acúmulo de informações
HÁ ALGUM tempo pode ter sido fácil arranjar assunto para falar de comida. Não é
mais. E por quê? Desde os anos 70
(Bocuse) até hoje (Ferran Adrià), o
assunto mais quente, o mais esnobe,
o mais interessante, foi comida.
Tanto em relação a ingredientes do
mundo inteiro quanto ao modo de
cozinhá-los e de apresentá-los.
Frescor e beleza foram as ordens
do dia nesses 40 anos. O frescor não
era lá muita novidade. Todo mundo
sabia das vantagens da jabuticaba no
pé, e a beleza, antes delegada à habilidade de trinchadores pirotécnicos
ao lado da mesa do restaurante, foi
substituída pelo prato feito e lindo,
todo marcado de dedinhos invisíveis. Mas quem se importa?
A apresentação também foi mudando. Primeiro, a comida achatada
e emoldurada pelo prato. Depois, foi
subindo, subindo em pirâmides do
Egito. Agora estamos a meio-termo.
Pocinha de molho, pequena porção
do ingrediente principal e um acompanhamento-enfeite ao lado, ou por
cima. Todos os sabores diferenciados ou combinados perfeitamente.
Então, dos anos 70 até hoje, a cozinha vem crescendo em sabedoria
como em idade, num processo civilizatório que infelizmente exige dinheiro -e muito- para patrocinar
os novos restaurantes e para que o
cliente possa desembolsar um bom
tanto pela refeição perfeita.
Foi interessante e divertido acompanhar a caminhada, uma novidade
por dia, um chef novo que aparecia,
dois que se suicidavam, cinco que
largavam tudo e iam para a Toscana,
cem que abriam bistrôs, novos que
surgiam. Azeites virgens, vinagres
grávidos.
Não é preciso nenhum estudo para ver que a nova cozinha se infiltrou
nas massas. Pegue a cozinheira recém-chegada, diga que sua comida é
a própria simplicidade, que não vai
precisar de "penso" nenhum, e comece a explicar. Cafezinho da manhã é rápido, só moer o café nesta
maquininha, que não pode lavar, senão estraga, hein!. Limpe com um
pincel. Fazer o café, a máquina faz. É
só enfiar o sachê. A quinua deixe de
molho um dia antes, senão demora
muito para cozinhar, e sirva com estas blueberries que têm vitamina
pra burro. E não se esqueça da caixa
de suplementos vitamínicos. O vidrinho de pílulas de óleo de fígado
de bacalhau ponha na geladeira.
A essa altura, a moça já pifou. Teria que fazer um curso supletivo culinário para esquecer o biju com
manteiga e café de coador.
Na verdade, a comida está no olho
de quem a vê, no seu passado, na sua
acumulação de informações, nos
bons restaurantes que freqüentou,
etc. e tal. Se nos aparece uma cozinheira de forno e fogão, não tenham
dúvidas, ela não é adepta da comida
minimalista, com certeza foi mordida pelo vírus dos anos 50, que tatuou
nossa alma.
Vai fazer salada de batatas com
maionese Hellmann's, estrogonofe
com batata palha muito sequinha,
arroz branco. (Cuidado, não digam
que gostam dessas coisas; se comerem, façam-no nas profundezas da
cozinha, com as crianças. E ainda
podem ter direito a uma fatia de presuntado com um pêssego Del Monte, se der sorte.)
Bom, o que quero dizer é que esses
40 anos foram uma festa para os
amantes da boa comida, mas, como
em toda grande festa, alguns convidados foram esquecidos e voltaram
com a vingança nas mãos, fadas com
varinhas de condão peçonhentas, fadas do Não!
E batiam nas comidas indiscriminadamente. Isso não pode, isso mata, isso aumenta o colesterol. E a
pressão? Larga esse vinho, tem que
ser tinto, cospe esse açúcar, cuidado
com o sal, toma varinha! Abaixo o
prazer! Quase que só sobraram
umas fibras de-li-cio-sas.
Faltou espaço para comentar o
que realmente esses 40 anos nos
trouxeram. Só o pecado? É uma outra história que fica para a semana
que vem.
ninahorta@uol.com.br
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