São Paulo, quinta-feira, 24 de abril de 2008

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NINA HORTA

40 anos de pecado?

A comida está no olho de quem a vê, no seu passado, no acúmulo de informações

HÁ ALGUM tempo pode ter sido fácil arranjar assunto para falar de comida. Não é mais. E por quê? Desde os anos 70 (Bocuse) até hoje (Ferran Adrià), o assunto mais quente, o mais esnobe, o mais interessante, foi comida. Tanto em relação a ingredientes do mundo inteiro quanto ao modo de cozinhá-los e de apresentá-los.
Frescor e beleza foram as ordens do dia nesses 40 anos. O frescor não era lá muita novidade. Todo mundo sabia das vantagens da jabuticaba no pé, e a beleza, antes delegada à habilidade de trinchadores pirotécnicos ao lado da mesa do restaurante, foi substituída pelo prato feito e lindo, todo marcado de dedinhos invisíveis. Mas quem se importa?
A apresentação também foi mudando. Primeiro, a comida achatada e emoldurada pelo prato. Depois, foi subindo, subindo em pirâmides do Egito. Agora estamos a meio-termo. Pocinha de molho, pequena porção do ingrediente principal e um acompanhamento-enfeite ao lado, ou por cima. Todos os sabores diferenciados ou combinados perfeitamente.
Então, dos anos 70 até hoje, a cozinha vem crescendo em sabedoria como em idade, num processo civilizatório que infelizmente exige dinheiro -e muito- para patrocinar os novos restaurantes e para que o cliente possa desembolsar um bom tanto pela refeição perfeita.
Foi interessante e divertido acompanhar a caminhada, uma novidade por dia, um chef novo que aparecia, dois que se suicidavam, cinco que largavam tudo e iam para a Toscana, cem que abriam bistrôs, novos que surgiam. Azeites virgens, vinagres grávidos.
Não é preciso nenhum estudo para ver que a nova cozinha se infiltrou nas massas. Pegue a cozinheira recém-chegada, diga que sua comida é a própria simplicidade, que não vai precisar de "penso" nenhum, e comece a explicar. Cafezinho da manhã é rápido, só moer o café nesta maquininha, que não pode lavar, senão estraga, hein!. Limpe com um pincel. Fazer o café, a máquina faz. É só enfiar o sachê. A quinua deixe de molho um dia antes, senão demora muito para cozinhar, e sirva com estas blueberries que têm vitamina pra burro. E não se esqueça da caixa de suplementos vitamínicos. O vidrinho de pílulas de óleo de fígado de bacalhau ponha na geladeira.
A essa altura, a moça já pifou. Teria que fazer um curso supletivo culinário para esquecer o biju com manteiga e café de coador.
Na verdade, a comida está no olho de quem a vê, no seu passado, na sua acumulação de informações, nos bons restaurantes que freqüentou, etc. e tal. Se nos aparece uma cozinheira de forno e fogão, não tenham dúvidas, ela não é adepta da comida minimalista, com certeza foi mordida pelo vírus dos anos 50, que tatuou nossa alma.
Vai fazer salada de batatas com maionese Hellmann's, estrogonofe com batata palha muito sequinha, arroz branco. (Cuidado, não digam que gostam dessas coisas; se comerem, façam-no nas profundezas da cozinha, com as crianças. E ainda podem ter direito a uma fatia de presuntado com um pêssego Del Monte, se der sorte.)
Bom, o que quero dizer é que esses 40 anos foram uma festa para os amantes da boa comida, mas, como em toda grande festa, alguns convidados foram esquecidos e voltaram com a vingança nas mãos, fadas com varinhas de condão peçonhentas, fadas do Não!
E batiam nas comidas indiscriminadamente. Isso não pode, isso mata, isso aumenta o colesterol. E a pressão? Larga esse vinho, tem que ser tinto, cospe esse açúcar, cuidado com o sal, toma varinha! Abaixo o prazer! Quase que só sobraram umas fibras de-li-cio-sas.
Faltou espaço para comentar o que realmente esses 40 anos nos trouxeram. Só o pecado? É uma outra história que fica para a semana que vem.


ninahorta@uol.com.br

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