São Paulo, sexta, 24 de abril de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"O Corvo" e suas diversas traduções

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Meados de 1997. Num almoço com o poeta Ivo Barroso, falávamos sobre traduções e nem lembro mais como chegamos a "O Corvo", de Edgar Allan Poe. Em minha vã ignorância, pensava que o poema só havia merecido duas versões em português, por sinal, de dois monstros sagrados, Machado de Assis e Fernando Pessoa.
Ivo falou numa terceira versão, a de Milton Amado. Começou a recitar a primeira estrofe, que por intermédio de Machado de Assis tornou-se tão popular, entre nós, quanto a abertura de "Os Lusíadas". Eu não a conhecia. Tinha referências de uma terceira tradução, a de Gondim da Fonseca. Ignorava o texto que Ivo recitava.
Foi assim que também me entusiasmei. Sabia que o mineiro Milton Amado traduzira outras obras em parceria com Oscar Mendes. No dia seguinte, Ivo enviou-me a tradução integral, acompanhando o ensaio que havia escrito sobre o tema, dando-me na bandeja um bom assunto para minha crônica diária.
Por força da localização do meu texto na página de opinião da Folha, minhas crônicas são geralmente de natureza política. Evidente que uso e abuso da independência que é a marca do jornal. Sempre que posso emigro do dia-a-dia de nossa vida pública (que é um respeitável saco) e enveredo para temas variados, embora tenha certa relutância em abordar a seara literária -constrangimento de quem atua profissionalmente não apenas no jornalismo, mas também na literatura.
Seria mais uma crônica das muitas que já escrevi. Daí que não me emocionei quando recebi o primeiro fax de um leitor pedindo a transcrição do texto de Milton Amado. Nos dias seguintes, começaram a chegar telegramas, cartas, faxes e telefonemas com o mesmo pedido. De todas as regiões do Brasil apareciam curtidores do poema, confraria numerosa espalhada em todo o território nacional. Liguei para o Ivo, que me deu informação igual: também ele estava sendo solicitado a mostrar o mapa da mina.
Ficamos orgulhosos em saber que um tema literário despertava tanto e tamanho interesse. Uma semana depois, recebi uma espécie de reclamação do departamento ligado ao relacionamento da Folha com os seus leitores. O volume de pedidos vindos de todas as partes do Brasil começava a tumultuar o serviço. Sugeriam-me que eu tomasse uma providência.
Fiz nova crônica, explicando o óbvio: meu espaço era pequeno para publicar a tradução de um poema razoavelmente longo. Além disso, havia a questão dos direitos autorais. Transmiti as indicações que me foram passadas pelo Ivo: a tradução de Milton integrava a coleção "Poemas e Ensaios de Edgar Allan Poe", edição da Globo de 1987. E, mais recentemente, a edição da Nova Aguillar reunindo a obra completa de Poe.
Posteriormente, num encontro casual com meu amigo Maurício Azêdo, ele me agarrou pelo braço, levou-me a um canto e começou a recitar outra tradução de "O Corvo", essa de Benedito Lopes. Novamente liguei para o Ivo e fiquei sabendo que ele estava dando o toque final em seu ensaio, no qual constaria o original de Poe acompanhado das diversas traduções em português: Machado de Assis (1883), Emílio de Meneses (1917), Fernando Pessoa (1924), Gondim da Fonseca (1928), Milton Amado (1943) e Benedito Lopes (1956).
Esse ensaio acaba agora de ser lançado pela Lacerda Editores, acrescida de mais uma tradução, esta de Alexei Bueno (1980). Como regalo ao leitor, Ivo acrescentou duas traduções antológicas em francês: a de Baudelaire (1853) e a de Mallarmé (1888) -outros dois monstros literários, devendo-se notar que a tradução de Machado ficou entre a de Baudelaire e a de Mallarmé. Ele sempre sabia o que estava fazendo.
Por essas e outras, o ensaio de Ivo Barroso é uma excelente ocasião para o leitor brasileiro tomar conhecimento não apenas do poema em si, mas dos desafios da versão de um texto literário em outra língua. Além de pertencer ao primeiro time dos poetas nacionais, Ivo Barroso é, reconhecidamente, um dos nossos mais importantes mestres na arte da tradução. Seu nome -editores e leitores o sabem- é garantia de seriedade e bom gosto.
Embora não se trate de um campeonato, é evidente que temos, Ivo e eu, opinião pessoal a respeito de cada uma das traduções. E aí a surpresa: apesar de o poema ter merecido a atenção de dois gênios de nossa literatura (Machado e Pessoa), o trabalho de Milton Amado, modesto redator provinciano em Minas Gerais, é disparadamente o melhor, tanto do ponto de vista técnico como da fidelidade interna ao poema.
Em tempo: os direitos autorais da edição, por consenso dos herdeiros dos tradutores cuja obra ainda não caiu em domínio público, serão da família de Milton Amado. Afinal, foi ele quem deu pretexto e oportunidade para a publicação, em livro, do ensaio de Ivo Barroso.
De minha parte, comerei o prato frio da vingança podendo informar ao serviço de atendimento aos leitores da Folha que o retorno dado à crônica sobre "O Corvo" foi um dos motivos desse livro. E que muitos novamente se emocionarão lendo em boa e criativa linguagem literária alguns dos mais belos versos produzidos pelo gênio humano.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.