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"O Corvo" e suas diversas traduções
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Meados de 1997. Num almoço com o poeta Ivo Barroso, falávamos sobre traduções e nem
lembro mais como chegamos a
"O Corvo", de Edgar Allan
Poe. Em minha vã ignorância,
pensava que o poema só havia
merecido duas versões em português, por sinal, de dois
monstros sagrados, Machado
de Assis e Fernando Pessoa.
Ivo falou numa terceira versão, a de Milton Amado. Começou a recitar a primeira estrofe, que por intermédio de
Machado de Assis tornou-se
tão popular, entre nós, quanto
a abertura de "Os Lusíadas".
Eu não a conhecia. Tinha referências de uma terceira tradução, a de Gondim da Fonseca.
Ignorava o texto que Ivo recitava.
Foi assim que também me
entusiasmei. Sabia que o mineiro Milton Amado traduzira
outras obras em parceria com
Oscar Mendes. No dia seguinte, Ivo enviou-me a tradução
integral, acompanhando o ensaio que havia escrito sobre o
tema, dando-me na bandeja
um bom assunto para minha
crônica diária.
Por força da localização do
meu texto na página de opinião da Folha, minhas crônicas são geralmente de natureza política. Evidente que uso e
abuso da independência que é
a marca do jornal. Sempre que
posso emigro do dia-a-dia de
nossa vida pública (que é um
respeitável saco) e enveredo
para temas variados, embora
tenha certa relutância em
abordar a seara literária
-constrangimento de quem
atua profissionalmente não
apenas no jornalismo, mas
também na literatura.
Seria mais uma crônica das
muitas que já escrevi. Daí que
não me emocionei quando recebi o primeiro fax de um leitor pedindo a transcrição do
texto de Milton Amado. Nos
dias seguintes, começaram a
chegar telegramas, cartas, faxes e telefonemas com o mesmo pedido. De todas as regiões
do Brasil apareciam curtidores
do poema, confraria numerosa
espalhada em todo o território
nacional. Liguei para o Ivo,
que me deu informação igual:
também ele estava sendo solicitado a mostrar o mapa da
mina.
Ficamos orgulhosos em saber
que um tema literário despertava tanto e tamanho interesse. Uma semana depois, recebi
uma espécie de reclamação do
departamento ligado ao relacionamento da Folha com os
seus leitores. O volume de pedidos vindos de todas as partes
do Brasil começava a tumultuar o serviço. Sugeriam-me
que eu tomasse uma providência.
Fiz nova crônica, explicando
o óbvio: meu espaço era pequeno para publicar a tradução de
um poema razoavelmente longo. Além disso, havia a questão dos direitos autorais.
Transmiti as indicações que
me foram passadas pelo Ivo: a
tradução de Milton integrava
a coleção "Poemas e Ensaios
de Edgar Allan Poe", edição da
Globo de 1987. E, mais recentemente, a edição da Nova
Aguillar reunindo a obra completa de Poe.
Posteriormente, num encontro casual com meu amigo
Maurício Azêdo, ele me agarrou pelo braço, levou-me a um
canto e começou a recitar outra tradução de "O Corvo", essa de Benedito Lopes. Novamente liguei para o Ivo e fiquei
sabendo que ele estava dando
o toque final em seu ensaio, no
qual constaria o original de
Poe acompanhado das diversas traduções em português:
Machado de Assis (1883), Emílio de Meneses (1917), Fernando Pessoa (1924), Gondim da
Fonseca (1928), Milton Amado
(1943) e Benedito Lopes (1956).
Esse ensaio acaba agora de
ser lançado pela Lacerda Editores, acrescida de mais uma
tradução, esta de Alexei Bueno
(1980). Como regalo ao leitor,
Ivo acrescentou duas traduções antológicas em francês: a
de Baudelaire (1853) e a de
Mallarmé (1888) -outros dois
monstros literários, devendo-se notar que a tradução de
Machado ficou entre a de Baudelaire e a de Mallarmé. Ele
sempre sabia o que estava fazendo.
Por essas e outras, o ensaio
de Ivo Barroso é uma excelente
ocasião para o leitor brasileiro
tomar conhecimento não apenas do poema em si, mas dos
desafios da versão de um texto
literário em outra língua.
Além de pertencer ao primeiro
time dos poetas nacionais, Ivo
Barroso é, reconhecidamente,
um dos nossos mais importantes mestres na arte da tradução. Seu nome -editores e leitores o sabem- é garantia de
seriedade e bom gosto.
Embora não se trate de um
campeonato, é evidente que temos, Ivo e eu, opinião pessoal a
respeito de cada uma das traduções. E aí a surpresa: apesar
de o poema ter merecido a
atenção de dois gênios de nossa literatura (Machado e Pessoa), o trabalho de Milton
Amado, modesto redator provinciano em Minas Gerais, é
disparadamente o melhor,
tanto do ponto de vista técnico
como da fidelidade interna ao
poema.
Em tempo: os direitos autorais da edição, por consenso
dos herdeiros dos tradutores
cuja obra ainda não caiu em
domínio público, serão da família de Milton Amado. Afinal, foi ele quem deu pretexto e
oportunidade para a publicação, em livro, do ensaio de Ivo
Barroso.
De minha parte, comerei o
prato frio da vingança podendo informar ao serviço de
atendimento aos leitores da
Folha que o retorno dado à
crônica sobre "O Corvo" foi um
dos motivos desse livro. E que
muitos novamente se emocionarão lendo em boa e criativa
linguagem literária alguns dos
mais belos versos produzidos
pelo gênio humano.
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