São Paulo, Sábado, 24 de Abril de 1999
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BIENAL DO LIVRO
Alessandro Baricco mostra ao Brasil sua "tragédia otimista"

CRISTINA GRILLO
da Sucursal do Rio

O escritor italiano Alessandro Baricco, 40, gosta de "romances com defeitos" e diz encontrar o que gosta nos clássicos do século passado. A tese do escritor: nos romances antigos, os autores podiam mudar os rumos de sua história repentinamente. Hoje, cobra-se a coerência absoluta da trama, sem espaço para a mudança de rumos.
"Conrad, por exemplo, comete tantos pequenos erros de rumo em seus romances que assim os torna perfeitos. Ele deixa claro que não sabia para onde queria ir e acompanhar esta descoberta é fascinante", disse o escritor, no Rio para lançar o romance "Mundos de Vidro" (1991), que ele autografa hoje, às 16h, na 9ª Bienal do Livro.
Baricco é uma estrela em ascensão no mercado editorial europeu. Disputado por editores na Feira de Frankfurt de 1998, já publicou três romances -além de "Mundos de Vidro", "Oceano Mar" (1993) e "Seda" (1996), ambos já lançados no Brasil.
Os três romances têm em comum um ponto: todos se passam em alguma bucólica cidade do interior no século passado.
Leia abaixo trechos da entrevista de Baricco à Folha.

Folha - Seus três romances se passam em pequenas cidades do interior, no século 19. Por quê?
Alessandro Baricco -
Gosto de manter distância de minhas histórias. Por isso as levo para longe de meu tempo. Como não sou capaz de escrever ficção científica, de escrever sobre o futuro, as mudo para o passado.
Mas não é um passado específico, um período determinado -exceto por "Seda". Em "Oceano Mar" e "Mundos de Vidro", não sei onde se passa o romance. É um "nenhum lugar", um lugar de fantasia em um tempo de fantasia. Não é uma escolha racional, é instintiva.
"City" (mais recente trabalho do autor, a ser lançado dentro de duas semanas na Itália) é meu primeiro romance passado no tempo atual. No livro conto muitas histórias ao mesmo tempo e a maioria é passada no presente, mas ainda assim é um lugar de fantasia.
Não sei exatamente por que, mas preciso dessa distância. Não gosto muito que meus personagens tenham que fazer coisas como pegar um ônibus, falar ao telefone. Eu prefiro que tudo fique em um período que não se possa definir.
Folha - O sr. é tido como um dos mais importantes escritores italianos da atualidade. O que acha de ser considerado uma estrela em ascensão no mercado editorial?
Baricco -
De alguma maneira, posso ser. Quando se começa a escrever, não se pensa nisso, não é exatamente o que se quer, mas às vezes acontece. Aconteceu comigo, mas é estranho. Moro em Turim, uma cidade que é grande, mas ao mesmo tempo é pequena, não é como Milão, Roma, Paris ou Londres. Dá para escolher seu jeito de ser uma estrela. Meu jeito é ficar quieto, silencioso. Minha vida não mudou muito, mas em alguma coisa mudou, já que agora estou ganhando dinheiro.
Folha - E a responsabilidade de ser considerado um escritor importante?
Baricco -
Quando se tem sucesso, para mim isso significa liberdade para escrever o que quero, quando quero e sobre o que quero. Você não se importa mais, por exemplo, com os críticos. Eles passam a ser menos importantes. É como uma corrida. Você ganha e acabou. Depois que ela acaba, é uma outra história. Agora, para mim, é uma história de liberdade e de prazer de escrever.
Folha - Como sua carreira começou?
Baricco -
Escrevo desde os 19 anos, mas nunca havia escrito ficção ou poesia. Fui jornalista, trabalhei em uma editora e em uma agência de publicidade, sempre escrevendo, mas nunca pensei que escreveria um romance. Comecei a escrever ficção quando fiz um roteiro com um amigo sobre Farinelli, cantor de ópera do século 18.
Ganhamos vários prêmios, mas o filme era caro e nunca foi feito. Dois anos depois, alguém filmou a história, mas com um outro roteiro ("Farinelli: Il Castrato", dirigido por Gérard Corbiau). A partir daí descobri que podia escrever ficção.
Folha - Em "Mundos de Vidro", o sr. usa um texto fragmentado, uma prosa que se divide em várias, sem linearidade. Já "Seda" é um romance linear. O que mudou entre os dois romances?
Baricco -
Não penso muito quando escrevo. Tenho uma idéia geral, um cruzamento de histórias. Imagino um livro como algo em que o autor está no meio e onde todos os fragmentos se movem em sua direção. O autor é a única força que pode manter unidos estes fragmentos. Este é o jogo.
Tenho várias histórias na minha cabeça e, para mim, a capacidade de escrever é pegar as histórias que estão coladas em mim e trabalhá-las até que se transformem em uma só história. E eu posso fazer isso com minha escrita, com minha técnica.
Folha - Mas em "Seda" não há essa escrita fragmentada.
Baricco -
"Seda" é totalmente diferente. Foi a primeira vez que escrevi daquele jeito e acho que foi a última. Não gosto dele, não gosto de histórias lineares, onde se começa, se tem o meio, se caminha passo a passo e se termina. Imagino histórias como lugares por onde se pode entrar por vários caminhos. Não acho interessante uma história que só tem uma linha. "Seda" é assim.
Achei que deveria tentar pelo menos uma vez e, para mim, era necessário manter uma estabilidade, mas só para essa história de fidelidade e traição. Queria ser preciso como um cirurgião, seguindo um só caminho. Em "City" já volto ao estilo antigo. É como um jogo, com muitas peças que se interligam. É um livro cubista.
Folha - Alguns críticos chamam seu trabalho de literatura pós-moderna. O que o sr. acha da definição?
Baricco -
E o que isso significa? Eu não sei. Quando se chama algo de pós-moderno, é porque não se sabe como chamá-lo.
Folha - O sr. prefere ser chamado de cubista?
Baricco -
Li isso em uma crítica em um jornal americano e acho que é uma boa definição, um bom nome para meu trabalho. Outro crítico, escrevendo sobre "Mundos de Vidro", disse que eu havia escrito uma "tragédia otimista". É verdade.
Acho que, quando as pessoas não têm nome para seus trabalhos, usam a palavra pós-moderno. Pode-se usar essa palavra para várias coisas. O que sei é que meus livros parecem escritos há cem anos, parecem do século passado, mas, ao mesmo tempo, a cada três linhas pode-se achar algo que mostra que eles são livros de agora.
Folha - Em qual aspecto? Quando o sr. lida com as paixões a as tensões dos relacionamentos, como Jun e Rail em "Mundos de Vidro" e Hervé Joncour e Helène em "Seda"?
Baricco -
Flaubert e Balzac também escreviam histórias recheadas de paixões e tensões. Muitas óperas de Puccini e Verdi também, mas o modo que escrevo é diferente. Não poderia escrever do jeito que eu escrevo, dessa forma fragmentada, se não houvesse o cinema. Talvez meu pós-modernismo esteja aí, escrever sobre o passado, mas com instrumentos modernos. Talvez sob esse aspecto aceito ser pós-moderno.
Folha - O sr. disse não gostar de "Seda". Qual é seu romance favorito?
Baricco -
É "City", mas também gosto muito de "Mundos". Foi o primeiro, eu tinha pouco dinheiro na época, escrevia à noite quando voltava do trabalho. Era muito difícil, mas ao mesmo tempo era muito bonito. Eram duas horas de paraíso todos os dias. Era o verdadeiro prazer de escrever.
Folha - Ao começar a fazer sucesso, o sr. acha que perdeu o verdadeiro prazer de escrever?
Baricco -
Não, é sempre excitante escrever. Nada mudou. Mas, quando escrevi "Mundos de Vidro", não havia um editor esperando por meu livro. Não havia leitores esperando por ele. Então, quando se decide escrever o primeiro livro, você decide fazer algo que ninguém pediu.
Isso exige uma grande dose de paixão, você precisa ser egomaníaco, narcisista. Nesse aspecto é diferente. Agora sei que há um editor esperando, sei que ele irá vender meu livro, sei que há leitores esperando. O resto não muda.


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