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São Paulo, sábado, 24 de maio de 2003

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WALTER SALLES

"Matrix" mistura Bosch, Bush e filosofia de botequim francês

O negócio é o seguinte: pegam-se os quadrinhos de Moebius, a fluidez narrativa de John Woo e Tsui-Hark, os simulacros e as simulações de Baudrillard, a multiplicação dos rostos de "Quero Ser John Malkovich", o balé de "O Tigre e o Dragão" e liga-se o triturador digital. O que sai cuspido do outro lado chama-se "Matrix Reloaded" e será um dos maiores sucessos comerciais da história do cinema. O resultado pode ser conferido em milhares de telas mundo afora.
Paradoxalmente, o ponto de partida de "Matrix" fala exatamente de resistência ao movimento de dominação planetária que o filme representa. Vamos à historinha: a cidade de Zion, foco da luta contra o domínio das máquinas e o totalitarismo que tomaram conta da Terra, está para ser invadida. Para salvar Zion -americano adora "salvar" o mundo-, Neo (Keanu Reeves) tem de entrar no cérebro da besta, a Matriz que rege o funcionamento do sistema.
Como descrever Zion? Bem, Zion parece uma mistura de catacumba romana com o "Jardim das Delícias", de Bosch. Algumas coisas nunca mudam, como diz um personagem do filme: a cidade nutre uma adoração quase religiosa por Morpheus, líder pop do pedaço. Zion é como uma grande rave. Todo mundo parece vestido dos pés à cabeça, perdão, dos sapatos aos óculos, por Jean-Paul Gautier-a noite ilustrada de Zion. Pelo que se vê numa das cenas menos convincentes do filme, todo mundo parece tomar ecstasy em Zion. Enquanto rola a festa e ecoa o bate-estaca da eletrônica, Neo e sua namorada Trinity transam numa espécie de cama-altar. Mais kitsch, impossível.
O filme evolui a uma velocidade alucinante, e os abalos sísmicos que as imagens propiciam são de rachar a retina. A tecnologia digital e os recursos trazidos pelo 3D transformam a natureza das imagens e projetam o espectador em um espaço de simulação constante. O que o filme diz ser é o oposto daquilo que ele é: Neo luta contra a dominação de simulacros, mas nos enreda em mais de duas horas de imagens virtuais.
A poluição da velocidade raramente foi sentida na tela com tanta força. Mas, de vez em quando, os irmãos Wachowski puxam o freio de mão digital e a narrativa pára por alguns minutos. Tempo para Neo se fazer perguntas que parecem tiradas de um livro de Paulo Coelho: temos ou não direito de escolha, existe ou não o acaso etc.
Chega-se ao final, que não é um final -há que guardar algo para o próximo capítulo da série, com estréia mundial no final do ano. De qualquer forma, algumas coisas acabam ficando claras: Matrix defende, como Bush, uma visão dicotômica do mundo. O bem contra o mal, sem meios-tons. O Estado é asfixiante, e o herói (Neo) tem de afrontá-lo e desmontá-lo. Não há soluções coletivas, e sim individuais etc. Um receituário já bem conhecido, que retorna agora com outra vestimenta. De óculos escuros, cool.
A violência, sintomaticamente, adquire contornos ainda mais irreais do que no primeiro "Matrix". Como na Guerra do Iraque, tudo parece um videogame. Os Wachowski propõem uma visão higiênica das armas de fogo. Neo, por exemplo, tem a capacidade de parar as balas com um gesto da mão. E quando elas atingem Trinity, ele também tem o poder de reconstruir o corpo da companheira. Mais do que nunca, há uma dissociação entre violência e dor na tela.
Algo não pode ser negado: a extraordinária habilidade dos irmãos Wachowski na criação e encadeamento das imagens virtuais. O resultado mexe com os sentidos de forma intensa e perturbadora. Talento a serviço de uma ideologia que é, de alguma forma, fundamentalista e totalizante. Os irmãos Wachowski seriam a Leni Riefenstahl da era digital?


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