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WALTER SALLES
"Matrix" mistura Bosch, Bush e filosofia de botequim francês
O negócio é o seguinte: pegam-se os quadrinhos de
Moebius, a fluidez narrativa de
John Woo e Tsui-Hark, os simulacros e as simulações de Baudrillard, a multiplicação dos rostos
de "Quero Ser John Malkovich", o
balé de "O Tigre e o Dragão" e liga-se o triturador digital. O que
sai cuspido do outro lado chama-se "Matrix Reloaded" e será um
dos maiores sucessos comerciais
da história do cinema. O resultado pode ser conferido em milhares de telas mundo afora.
Paradoxalmente, o ponto de
partida de "Matrix" fala exatamente de resistência ao movimento de dominação planetária
que o filme representa. Vamos à
historinha: a cidade de Zion, foco
da luta contra o domínio das máquinas e o totalitarismo que tomaram conta da Terra, está para
ser invadida. Para salvar Zion
-americano adora "salvar" o
mundo-, Neo (Keanu Reeves)
tem de entrar no cérebro da besta,
a Matriz que rege o funcionamento do sistema.
Como descrever Zion? Bem,
Zion parece uma mistura de catacumba romana com o "Jardim
das Delícias", de Bosch. Algumas
coisas nunca mudam, como diz
um personagem do filme: a cidade nutre uma adoração quase religiosa por Morpheus, líder pop
do pedaço. Zion é como uma
grande rave. Todo mundo parece
vestido dos pés à cabeça, perdão,
dos sapatos aos óculos, por Jean-Paul Gautier-a noite ilustrada
de Zion. Pelo que se vê numa das
cenas menos convincentes do filme, todo mundo parece tomar
ecstasy em Zion. Enquanto rola a
festa e ecoa o bate-estaca da eletrônica, Neo e sua namorada Trinity transam numa espécie de cama-altar. Mais kitsch, impossível.
O filme evolui a uma velocidade
alucinante, e os abalos sísmicos
que as imagens propiciam são de
rachar a retina. A tecnologia digital e os recursos trazidos pelo 3D
transformam a natureza das
imagens e projetam o espectador
em um espaço de simulação constante. O que o filme diz ser é o
oposto daquilo que ele é: Neo luta
contra a dominação de simulacros, mas nos enreda em mais de
duas horas de imagens virtuais.
A poluição da velocidade raramente foi sentida na tela com
tanta força. Mas, de vez em quando, os irmãos Wachowski puxam
o freio de mão digital e a narrativa pára por alguns minutos. Tempo para Neo se fazer perguntas
que parecem tiradas de um livro
de Paulo Coelho: temos ou não
direito de escolha, existe ou não o
acaso etc.
Chega-se ao final, que não é um
final -há que guardar algo para
o próximo capítulo da série, com
estréia mundial no final do ano.
De qualquer forma, algumas coisas acabam ficando claras: Matrix defende, como Bush, uma visão dicotômica do mundo. O bem
contra o mal, sem meios-tons. O
Estado é asfixiante, e o herói
(Neo) tem de afrontá-lo e desmontá-lo. Não há soluções coletivas, e sim individuais etc. Um receituário já bem conhecido, que
retorna agora com outra vestimenta. De óculos escuros, cool.
A violência, sintomaticamente,
adquire contornos ainda mais irreais do que no primeiro "Matrix". Como na Guerra do Iraque,
tudo parece um videogame. Os
Wachowski propõem uma visão
higiênica das armas de fogo. Neo,
por exemplo, tem a capacidade de
parar as balas com um gesto da
mão. E quando elas atingem Trinity, ele também tem o poder de
reconstruir o corpo da companheira. Mais do que nunca, há
uma dissociação entre violência e
dor na tela.
Algo não pode ser negado: a extraordinária habilidade dos irmãos Wachowski na criação e encadeamento das imagens virtuais. O resultado mexe com os
sentidos de forma intensa e perturbadora. Talento a serviço de
uma ideologia que é, de alguma
forma, fundamentalista e totalizante. Os irmãos Wachowski seriam a Leni Riefenstahl da era digital?
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