São Paulo, segunda-feira, 24 de maio de 2004

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NELSON ASCHER

Quem é George W. Bush?

Há um conto de Guy de Maupassant cujo protagonista tem uma mulher que administra tão bem o orçamento doméstico, que ambos vivem confortavelmente. Os únicos defeitos da moça são um apego às bijuterias baratas e uma queda, que o marido não compartilha, pelo teatro. Após o resfriado com o qual ela volta certa noite de um espetáculo degenerar em uma pneumonia fatal, o viúvo constata que seu salário, antes suficiente para dois, nem sequer lhe cobre as despesas individuais e, pior ou melhor, ao pôr à venda as bijuterias da finada, descobre que eram jóias de verdade.
Quem não conhece alguma história dessas ou a de um cidadão exemplar cuja mulher e filhos ficam sabendo que ele possuía outra família somente quando abrem seu testamento? Quantas pessoas não foram passadas para trás por alguém que julgavam idiota ou apostaram na inteligência de quem claramente não dispunha de nenhuma?
Apesar disso, muitos discorrem sobre figuras históricas ou gente que nunca viram em carne e osso como se fossem parentes próximos ou amigos de infância. O exemplo mais conspícuo hoje em dia é o do presidente americano. Que se aprove ou se desaprove a atual política dos EUA, que se apóie ou se combata, devido a suas ações e discurso, a administração do país, são atitudes e sentimentos perfeitamente razoáveis. Mas que tantos se considerem aptos a psicanalisar uma imagem coreografada que às vezes surge na TV lendo de um teleprompter textos redigidos por "ghostwriters", tem um quê de enigmático.
O presidente em questão é considerado, ao mesmo tempo e pelos mesmíssimos críticos, um oligofrênico e o gênio do mal. A acreditarmos no que se fala, ele amalgama em si, sem contradição aparente, Chauncy Gardiner (Peter Sellers) de "Muito Além do Jardim" e Magneto (Ian McKellen) de "X-Men", Charles Bovary e Ricardo 3º , Kaspar Hauser e Maquiavel. Tal ponto de vista, não se restringindo à esquerda, abarca, pelo menos no Brasil, todo o espectro ideológico. Interpretam-se suas expressões faciais, linguagem corporal e tons de voz seja para se provar que ele não passa de um boneco de ventríloquo, seja para se identificar no conjunto uma manha superior à do demônio. E, no entanto, nestes tempos povoados de teorias conspirativas, parece não ter ocorrido a ninguém que talvez se trate de uma ficção inventada pelos neoconservadores e encarnada por diversos atores ou de uma criação virtual como Max Headroom. Quem, afinal, garante que George W. Bush realmente existe?
Exista ou não, ele se tornou o alvo improvável de paixões que eclipsam a fria racionalidade necessária para se entender a política norte-americana e o quadro internacional. Vale lembrar que, após décadas de pesquisa minuciosa, de inúmeros documentários e incontáveis biografias publicadas, ainda não se encontrou a especificidade que, no âmago das personalidades de Hitler e Stálin, transformava-os em tiranos eficazmente destrutivos. Tampouco se chegou a uma explicação incontroversa do carisma que permitia ao portador de um bigodinho ridículo que gesticulava histericamente e a um quase anão georgiano que falava russo com sotaque conduzirem massas eufóricas ao homicídio e suicídio coletivos. Quem traça paralelos históricos de improviso, comparando Bush a algum déspota clássico, se esquece de que até o "Führer" e o "Pai dos Povos", que, aliás, nada tinham de imbecis, precisaram cada qual de cerca de uma década no poder para adquirirem integralmente a estatura de vilões superlativos.
Parte do fascínio que o ocupante da Casa Branca exerce sobre seus adversários se explica pela dificuldade que há em se relacionar passionalmente com entidades impessoais. Embora o regime militar de Buenos Aires tenha sido mais brutal que o de Santiago do Chile, foi Pinochet que virou o símbolo das ditaduras sul-americanas, não os vários membros meio irreconhecíveis das juntas argentinas. Uma vez que, à primeira vista, o presidente americano não se diferencia de um sujeito comum que, copo na mão e comendo canapés, mal seria percebido num coquetel ou festa, isso colabora para que atraia eleitores que se vêem refletidos nele e horrorize os opositores. Se aqueles o tomam como um dos seus, um americano médio, para estes ele personifica a nação, a cultura e o modo de vida mais abominados numa época que fez do antiamericanismo sua principal religião. Bush resolveu o problema de se odiar pessoalmente algo tão imenso e heterogêneo como um país inteiro dando aos defeitos reais ou imaginários dos EUA uma cara.
Tudo indica que as reações viscerais ao presidente se assemelham ao modo como costumam ser vaiados ou agredidos na rua, por um público incapaz de distinguir entre fantasia e realidade, os atores ou atrizes que desempenham papéis negativos nas telenovelas. Graças à ira que desperta, Bush, reduzido ou promovido a arquétipo, se converteu numa personagem muito maior do que provavelmente é. Sua demonização, que não deixa de ser uma admiração às avessas, o fortalece e pode bem contribuir para sua reeleição.
Ironicamente assim, para os que se contrapõem a sério ao atual governo americano ou até aos Estados Unidos sob qualquer administração, entregar-se ao deleite de detestá-lo acaba sendo contraproducente na medida em que eles ignoram o conselho que, em "O Chefão", Don Vito Corleone dá aos filhos, dizendo-lhes que a guerra de gangues na qual tinham entrado não envolvia rancores pessoais, pois era apenas "business as usual". Todo e qualquer manual bélico já escrito enfatiza uma lição importante: não há erro maior do que subestimar o inimigo.


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