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NELSON ASCHER
Quem é George W. Bush?
Há um conto de Guy de Maupassant cujo protagonista
tem uma mulher que administra
tão bem o orçamento doméstico,
que ambos vivem confortavelmente. Os únicos defeitos da moça são um apego às bijuterias baratas e uma queda, que o marido
não compartilha, pelo teatro.
Após o resfriado com o qual ela
volta certa noite de um espetáculo
degenerar em uma pneumonia
fatal, o viúvo constata que seu salário, antes suficiente para dois,
nem sequer lhe cobre as despesas
individuais e, pior ou melhor, ao
pôr à venda as bijuterias da finada, descobre que eram jóias de
verdade.
Quem não conhece alguma história dessas ou a de um cidadão
exemplar cuja mulher e filhos ficam sabendo que ele possuía outra família somente quando
abrem seu testamento? Quantas
pessoas não foram passadas para
trás por alguém que julgavam
idiota ou apostaram na inteligência de quem claramente não dispunha de nenhuma?
Apesar disso, muitos discorrem
sobre figuras históricas ou gente
que nunca viram em carne e osso
como se fossem parentes próximos ou amigos de infância. O
exemplo mais conspícuo hoje em
dia é o do presidente americano.
Que se aprove ou se desaprove a
atual política dos EUA, que se
apóie ou se combata, devido a
suas ações e discurso, a administração do país, são atitudes e sentimentos perfeitamente razoáveis. Mas que tantos se considerem aptos a psicanalisar uma
imagem coreografada que às vezes surge na TV lendo de um teleprompter textos redigidos por
"ghostwriters", tem um quê de
enigmático.
O presidente em questão é considerado, ao mesmo tempo e pelos
mesmíssimos críticos, um oligofrênico e o gênio do mal. A acreditarmos no que se fala, ele amalgama em si, sem contradição aparente, Chauncy Gardiner (Peter
Sellers) de "Muito Além do Jardim" e Magneto (Ian McKellen)
de "X-Men", Charles Bovary e Ricardo 3º , Kaspar Hauser e Maquiavel. Tal ponto de vista, não se
restringindo à esquerda, abarca,
pelo menos no Brasil, todo o espectro ideológico. Interpretam-se
suas expressões faciais, linguagem corporal e tons de voz seja
para se provar que ele não passa
de um boneco de ventríloquo, seja
para se identificar no conjunto
uma manha superior à do demônio. E, no entanto, nestes tempos
povoados de teorias conspirativas, parece não ter ocorrido a ninguém que talvez se trate de uma
ficção inventada pelos neoconservadores e encarnada por diversos
atores ou de uma criação virtual
como Max Headroom. Quem, afinal, garante que George W. Bush
realmente existe?
Exista ou não, ele se tornou o alvo improvável de paixões que
eclipsam a fria racionalidade necessária para se entender a política norte-americana e o quadro
internacional. Vale lembrar que,
após décadas de pesquisa minuciosa, de inúmeros documentários e incontáveis biografias publicadas, ainda não se encontrou
a especificidade que, no âmago
das personalidades de Hitler e
Stálin, transformava-os em tiranos eficazmente destrutivos.
Tampouco se chegou a uma explicação incontroversa do carisma
que permitia ao portador de um
bigodinho ridículo que gesticulava histericamente e a um quase
anão georgiano que falava russo
com sotaque conduzirem massas
eufóricas ao homicídio e suicídio
coletivos. Quem traça paralelos
históricos de improviso, comparando Bush a algum déspota clássico, se esquece de que até o "Führer" e o "Pai dos Povos", que,
aliás, nada tinham de imbecis,
precisaram cada qual de cerca de
uma década no poder para adquirirem integralmente a estatura de vilões superlativos.
Parte do fascínio que o ocupante da Casa Branca exerce sobre
seus adversários se explica pela
dificuldade que há em se relacionar passionalmente com entidades impessoais. Embora o regime
militar de Buenos Aires tenha sido mais brutal que o de Santiago
do Chile, foi Pinochet que virou o
símbolo das ditaduras sul-americanas, não os vários membros
meio irreconhecíveis das juntas
argentinas. Uma vez que, à primeira vista, o presidente americano não se diferencia de um sujeito comum que, copo na mão e
comendo canapés, mal seria percebido num coquetel ou festa, isso
colabora para que atraia eleitores
que se vêem refletidos nele e horrorize os opositores. Se aqueles o
tomam como um dos seus, um
americano médio, para estes ele
personifica a nação, a cultura e o
modo de vida mais abominados
numa época que fez do antiamericanismo sua principal religião.
Bush resolveu o problema de se
odiar pessoalmente algo tão
imenso e heterogêneo como um
país inteiro dando aos defeitos
reais ou imaginários dos EUA
uma cara.
Tudo indica que as reações viscerais ao presidente se assemelham ao modo como costumam
ser vaiados ou agredidos na rua,
por um público incapaz de distinguir entre fantasia e realidade, os
atores ou atrizes que desempenham papéis negativos nas telenovelas. Graças à ira que desperta, Bush, reduzido ou promovido
a arquétipo, se converteu numa
personagem muito maior do que
provavelmente é. Sua demonização, que não deixa de ser uma admiração às avessas, o fortalece e
pode bem contribuir para sua reeleição.
Ironicamente assim, para os
que se contrapõem a sério ao
atual governo americano ou até
aos Estados Unidos sob qualquer
administração, entregar-se ao deleite de detestá-lo acaba sendo
contraproducente na medida em
que eles ignoram o conselho que,
em "O Chefão", Don Vito Corleone dá aos filhos, dizendo-lhes que
a guerra de gangues na qual tinham entrado não envolvia rancores pessoais, pois era apenas
"business as usual". Todo e qualquer manual bélico já escrito enfatiza uma lição importante: não
há erro maior do que subestimar
o inimigo.
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