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CONTARDO CALLIGARIS
A liberdade de quem migra
Para os migrantes, cada um é responsável não só pelos conterrâneos mas por todos, mundo afora
AO NASCER, a gente pertence a
uma nação por um destes
dois princípios jurídicos:
1) pelo direito de sangue, sou francês ou alemão porque nas minhas
veias corre sangue francês ou alemão, ou seja, tenho a nacionalidade
de meus ascendentes; 2) pelo direito
de solo, sou brasileiro ou norte-americano porque nasci no Brasil ou
nos EUA, seja qual for a nacionalidade de meus pais -aliás, mesmo que
minha mãe estivesse apenas passando por lá, por acaso, no dia do parto.
O direito de solo é típico das nações americanas, cuja origem é, em
grande parte, migratória: nas colônias, era urgente que os descendentes dos imigrantes transformassem
a terra (com a qual seus pais tinham
sonhado) num país.
O direito de sangue é típico das nações européias, que atribuem sua
unidade à história e à tradição cultural. Presume-se, portanto, que, para
fazer de mim um francês, um italiano etc., o legado de meus ascendentes seja mais importante do que o
endereço em que nasci.
A grande maioria das nações americanas, sobretudo uma vez consolidadas, adotaram uma mistura dos
dois princípios. Por exemplo, qualquer um que nasça nos EUA é cidadão dos mesmos, mas isso é também
o caso dos filhos de americanos nascidos no exterior. Sobrou um resto
da primazia originária do direito de
solo: só pode ser presidente quem
viu a luz no território nacional.
Pois bem, uma reportagem de Vinícius Queiroz Galvão, na Folha de
domingo, revelou que uma emenda
constitucional de 1994 criou uma
situação bizarra: toda criança nascida de pais brasileiros no exterior
está no limbo, pois sua nacionalidade brasileira é condicional. A
criança será brasileira só se, um
dia, residir no Brasil e optar pela
nacionalidade brasileira perante
um juiz federal (processo que, em
São Paulo, leva sete anos).
Difícil saber se a dita emenda foi
votada por imperícia ou por espírito de galinheiro. Seja como for, a
brincadeira afeta 200 mil filhos de
brasileiros no estrangeiro; os (numerosos) assessores de deputados
e senadores poderiam ter previsto
esse efeito da emenda e também
considerado seu custo psicológico.
Um caso. Imagine um casal de
emigrantes brasileiros "não-documentados" nos EUA; um dia, eles
têm um filho que é, pelo direito de
solo, norte-americano. O menino
fala inglês perfeitamente (como o
nativo que é). É ele que acaba introduzindo os pais à nova cultura,
numa estranha inversão, como se
eles fossem as crianças. Além disso, o menino é o porta-voz de uma
nação à qual os pais querem se integrar, mas para a qual são ilegais.
Nessa situação, para que os pais
mantenham alguma autoridade
simbólica sobre o filho, é preciso
que a cultura brasileira de origem
continue sendo um valor para os
três (pais e filho), pois é enquanto
brasileiro que o menino poderá ser
filho (e não, paradoxalmente, pai)
de seus genitores. Ora, com a
emenda de 1994, os pais sequer podem transmitir ao filho sua nacionalidade.
Uma consolação: talvez a patologia das migrações seja um resto do
passado (um resto que persiste);
talvez a verdadeira patologia seja
hoje a sobrevivência das identidades nacionais.
Conheci, pouco tempo atrás e
graças a um leitor, a obra de Vilém
Flusser, morto em 1991, filósofo e
ensaísta, judeu e tcheco, que fugiu
de Praga em 1939, viveu no Brasil
de 1940 a 1972 e foi, enfim, para
Alemanha e França. Flusser escreveu uma interessante "Fenomenologia do Brasileiro" (ed. UERJ). Para conhecê-lo, recomendo "Bodenlos - Uma Autobiografia Filosófica" (Annablume 2007) e uma dissertação de mestrado na ECA, de
Ricardo Mendes (www.fotoplus.com/flusser). Em "The Freedom
of the Migrant -0Objections to Nationalism" (a liberdade de quem
migra - objeções ao nacionalismo,
University of Illinois, 2003), Flusser faz do migrante, do apátrida, o
emblema da modernidade.
O migrante é aquele que não precisa mais da casa que perdeu; sua
morada não é um país nem uma
cultura: ele está em casa no exílio,
pois é no exílio que aparece a universalidade da inquietação moral
moderna.
O internacionalismo proletário
marxista, assim como a globalização capitalista, talvez seja apenas
epifenômeno fracassado do universalismo cristão que fundou a
cultura moderna: somos indivíduos, sem morada fixa, e por isso
mesmo cada um de nós é responsável não apenas por seus conterrâneos mas por todos, mundo afora.
ccalligari@uol.com.br
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