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RODAPÉ LITERÁRIO
As ferroadas e o mel
"Histórias e Sonhos" representa a habilidade de Lima Barreto em figurar os abismos sociais brasileiros
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
MORTO EM 1922, aos 41 anos,
Lima Barreto deixou inconcluso "O Cemitério dos
Vivos" (Planeta, 2004), projeto dostoiévskiano de recriação literária de
um diário de hospício, experiência
biográfica traumática do escritor carioca, vítima do alcoolismo e da própria inflexibilidade moral. Uma coletânea de narrativas breves, "Histórias e Sonhos", de 1920, que reaparece, agora, em edição preparada e introduzida por Antonio Arnoni Prado, acabou por herdar as honras de
seu testamento literário.
Como nota Arnoni, autor do ótimo "Trincheira, Palco e Letras" (Cosac Naify, 2004) e íntimo do período
como poucos, não está mal assim. Os
contos do volume ainda funcionam
como síntese dos temas, da contundência crítica e do olhar realista e
engajado, alternando compaixão e
sarcasmo, mas sempre afetivo, do
autor de "Policarpo Quaresma", sobre o Brasil da Primeira República.
Se nem todos têm a simplicidade
arrematada de jóias do gênero (como "Clara dos Anjos", topografia
sentimental e social dos subúrbios
cariocas, casada a uma radiografia
do destino infeliz da mulata pobre
seduzida, ou "A Biblioteca", balanço
melancólico, em chave brasileira, do
fosso entre os livros e o mundo),
mesmo o ocasional "ruim esquisito", para falar como Orwell, ganha
fácil em interesse de um meio-termo acomodatício, escravo da frase
bela.
O Lima Barreto cronista e observador social, resumindo no traço incisivo o sintomático e o essencial de
seu tempo, não se restringiu à produção jornalística (reunida nos dois
volumes recentes de "Toda Crônica", Agir, 2004). Está também em
passagens quase ensaísticas assimiladas admiravelmente aos contos.
Exemplo disso é "O Moleque",
história sobre infância e preconceito, na qual os efeitos colaterais, desastrosos, do ímpeto modernizador
da paisagem urbana do Rio de Janeiro são alfinetados lateralmente. A
defesa nostálgica da toponímia tupi,
varrida como tralha passadista, apesar de mais lírica (Guanabara, seio
do mar) e sábia, poderia, sem susto,
ganhar autonomia, mas não deixa de
funcionar bem em seu contexto.
Ao lado de contos ao sabor de Voltaire e Machado ("Congresso Pamplanetário", em que uma paz imperial cósmica é promovida sob o tacão
jupiteriano, disfarçado em diplomacia, ou "Harakashy e as Escolas de
Java", em que a cultura livresca e
acadêmica, esvaziada em marca fetichista de distinção de classe e mecanismo de exclusão social, é denunciada), "Histórias e Sonhos" representa a habilidade do autor em figurar os abismos sociais brasileiros em
destinos exemplares (o do filho natural, mulato, renegado pelo pai ascendente; o do falso sábio, arrivista
mistificador bem-sucedido; o dos
"voluntários da pátria" reformados,
recorrendo a expedientes para sobreviver). Sua atualidade, espantosa, é sinal de que Lima Barreto soube chegar às raízes.
HISTÓRIAS E SONHOS
Autor: Lima Barreto
Editora: WMF/Martins Fontes
Quanto: R$ 39,80 (264 págs.)
Avaliação: ótimo
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