São Paulo, sábado, 24 de maio de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

As ferroadas e o mel

"Histórias e Sonhos" representa a habilidade de Lima Barreto em figurar os abismos sociais brasileiros

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

MORTO EM 1922, aos 41 anos, Lima Barreto deixou inconcluso "O Cemitério dos Vivos" (Planeta, 2004), projeto dostoiévskiano de recriação literária de um diário de hospício, experiência biográfica traumática do escritor carioca, vítima do alcoolismo e da própria inflexibilidade moral. Uma coletânea de narrativas breves, "Histórias e Sonhos", de 1920, que reaparece, agora, em edição preparada e introduzida por Antonio Arnoni Prado, acabou por herdar as honras de seu testamento literário.
Como nota Arnoni, autor do ótimo "Trincheira, Palco e Letras" (Cosac Naify, 2004) e íntimo do período como poucos, não está mal assim. Os contos do volume ainda funcionam como síntese dos temas, da contundência crítica e do olhar realista e engajado, alternando compaixão e sarcasmo, mas sempre afetivo, do autor de "Policarpo Quaresma", sobre o Brasil da Primeira República.
Se nem todos têm a simplicidade arrematada de jóias do gênero (como "Clara dos Anjos", topografia sentimental e social dos subúrbios cariocas, casada a uma radiografia do destino infeliz da mulata pobre seduzida, ou "A Biblioteca", balanço melancólico, em chave brasileira, do fosso entre os livros e o mundo), mesmo o ocasional "ruim esquisito", para falar como Orwell, ganha fácil em interesse de um meio-termo acomodatício, escravo da frase bela.
O Lima Barreto cronista e observador social, resumindo no traço incisivo o sintomático e o essencial de seu tempo, não se restringiu à produção jornalística (reunida nos dois volumes recentes de "Toda Crônica", Agir, 2004). Está também em passagens quase ensaísticas assimiladas admiravelmente aos contos. Exemplo disso é "O Moleque", história sobre infância e preconceito, na qual os efeitos colaterais, desastrosos, do ímpeto modernizador da paisagem urbana do Rio de Janeiro são alfinetados lateralmente. A defesa nostálgica da toponímia tupi, varrida como tralha passadista, apesar de mais lírica (Guanabara, seio do mar) e sábia, poderia, sem susto, ganhar autonomia, mas não deixa de funcionar bem em seu contexto.
Ao lado de contos ao sabor de Voltaire e Machado ("Congresso Pamplanetário", em que uma paz imperial cósmica é promovida sob o tacão jupiteriano, disfarçado em diplomacia, ou "Harakashy e as Escolas de Java", em que a cultura livresca e acadêmica, esvaziada em marca fetichista de distinção de classe e mecanismo de exclusão social, é denunciada), "Histórias e Sonhos" representa a habilidade do autor em figurar os abismos sociais brasileiros em destinos exemplares (o do filho natural, mulato, renegado pelo pai ascendente; o do falso sábio, arrivista mistificador bem-sucedido; o dos "voluntários da pátria" reformados, recorrendo a expedientes para sobreviver). Sua atualidade, espantosa, é sinal de que Lima Barreto soube chegar às raízes.


HISTÓRIAS E SONHOS
Autor:
Lima Barreto
Editora: WMF/Martins Fontes
Quanto: R$ 39,80 (264 págs.)
Avaliação: ótimo


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