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CONTARDO CALLIGARIS
"Cazuza"
Estreou, na semana passada, "Cazuza - O Tempo
Não Pára", de Sandra Werneck
e Walter Carvalho.
O desfecho trágico da história
é conhecido por todo mundo.
Apesar disso, ela me proporcionou momentos de grande alegria. Mas não é só isso, não é só
uma questão de momentos.
O filme me deixou numa espécie de felicidade pensativa. Tento explicar por quê.
Cazuza mordeu a vida com
todos os dentes. A doença e a
morte parecem ter-se vingado
de sua paixão exagerada de viver. É impossível sair da sala de
cinema sem se perguntar mais
uma vez: o que vale mais, a preservação de nossas forças, que
nos garantiria uma vida mais
longa, ou a livre procura da máxima intensidade e variedade
da experiência? Melhor viver a
mil (e menos tempo) ou viver
com moderação (e mais tempo)?
Digo que a pergunta se apresenta "mais uma vez" porque a
questão é hoje trivial e, ao mesmo tempo, persecutória. É melhor ficarmos acordados até tarde pelo prazer da companhia ou
voltar logo para casa e para a
cama, já que, de manhã cedo,
será a hora da esteira e da bicicleta? Vamos transar no domingo à noite ou será que a segunda
é um dia muito pesado?
Obedecemos a uma proliferação de regras que são ditadas
pelos progressos da prevenção.
Ninguém imagina que comer
banha, fumar, tomar pinga,
transar sem camisinha e combinar, sei lá, nitratos com Viagra
seja uma boa idéia. De fato, não
é.
À primeira vista, em suma,
parece lógico que concordemos
sem hesitação sobre o seguinte:
não há ou não deveria haver
prazeres que valham um risco
de vida ou, simplesmente, que
valham o risco de encurtar a vida. De que adiantaria um prazer que, por assim dizer, cortasse
o galho sobre o qual está sentado?
Mas, por trás dessa obviedade,
esconde-se um estranho momento na história da moralidade. Durante muitos séculos,
constatamos que a carne era
fraca e que o espírito tinha sérias dificuldades em conter seus
ímpetos. Ultimamente, encontramos uma solução elegante:
delegamos à carne a tarefa de
controlar a carne. A experiência
dos prazeres deveria ser contida
porque é anti-higiênica, biologicamente nociva, ruim para o
corpo.
Por mais que a coisa faça sentido, ela não deixa de ser curiosa. No fundo, se admitirmos por
um instante que nossa escolha
moral nos define, chegaremos à
conclusão de que homem bom é
aquele que se resguarda; o mérito humano não dependeria das
coisas e causas pelas quais arriscamos a vida, o mérito seria preservar a vida de qualquer forma.
Navegamos entre os mal-encarados que nos intimam "A
bolsa ou a vida!" e os bem-encarados (bem demais) que nos intimam "O prazer ou a vida!".
Ambos prefeririam que escolhêssemos ficar com vida. Eles
têm razão, pois quem perde a vida perde também a bolsa ou o
prazer. Mas acontece que, ao
responder a essa intimações, dizemos sobretudo o que caracteriza nossa vida, o que faz que
ela, aos nossos olhos, valha a pena: por exemplo, a bolsa, o prazer ou um tempo suplementar.
Os jovens têm uma razão básica para desconfiar de uma moral prudente e um pouco avara
que sugere que escolhamos sempre os tempos suplementares. É
que a morte lhes parece distante, uma coisa com a qual a gente
se preocupará mais tarde, muito
mais tarde. Mas sua vontade de
caminhar na corda bamba e
sem rede não é apenas a inconsciência de quem pode esquecer
que "o tempo não pára". É também (e talvez sobretudo) um
questionamento que nos desafia: para disciplinar a experiência, será que temos outras razões que não sejam só a decisão
de durar um pouco mais?
Cuidado: o filme não é uma
diatribe contra a "vida louca"
ou a favor dela. Tampouco ele
faz desse dilema uma tragédia.
Ao contrário, ele contempla
nosso desamparo moral com
uma ternura parecida com a
dos pais do próprio Cazuza (admiráveis Marieta Severo e Reginaldo Faria). É esse carinho que
mantém nosso sorriso.
O amor dos pais de Cazuza
pelo filho, aliás, constitui uma
das tramas mais tocantes da
história. Haverá alguém para
achar que Cazuza ainda estaria
entre nós, se eles tivessem controlado seu filho com rigor. Outros observarão que, se isso tivesse acontecido, Cazuza nunca
teria existido. Provavelmente
ambos têm razão. O que significa querer que nossos filhos vinguem? É justo deixar que, pela
intensidade de seus desejos,
queimem a vida como um cigarro? É certo forçá-los a respeitar
nosso desejo de morrermos antes deles acima das paixões que
podem consumi-los? Não conheço um pai que, alguma vez,
não tenha se colocado essas perguntas.
O filme é imperdível para
quem é ou já foi adolescente um
dia, para quem é (ou será) pai
de adolescente e, em geral, para
quem se pergunta ou se perguntou um dia qual é o critério do
bem ou do mal quando a paixão de viver é tamanha que ela
ameaça nossa própria vida.
Resta agradecer a Daniel de
Oliveira por sua performance
no papel de Cazuza, assim como
a Fernando Bonassi e Victor
Navas pelos diálogos.
ccalligari@uol.com.br
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